Depois da tragédia

Correia da Fonseca

Soubemos pela televisão, naturalmente, até porque é a televisão que tudo nos ensina ou pelo menos que tudo nos quer ensinar: o helicóptero caiu numa zona perto de Valongo numa noite de sábado, noite feia de chuva e nevoeiro, depois de ter chocado com uma torre de transporte de energia e/ou com fios de alta tensão.

Regressava do Porto, para onde transportara um doente, e voltava com quatro pessoas a bordo: piloto, co-piloto, médico e enfermeira. Segundo a opinião unânime dos técnicos que examinaram os corpos e os destroços do aparelho, os quatro tiveram morte imediata, nenhum eventual socorro os salvaria por mais rápido que fosse. Ainda assim, porém, e sobrepondo-se até às palavras de desolação e pesar pelo acontecido, depressa diversos canais da televisão portuguesa arrancaram para comentários que sublinhavam a demora que feriu as operações de socorro que foram desencadeadas.

É certo que esse socorro seria sempre inútil, pois não há qualquer dúvida sobre a morte imediata das vítimas, mas ainda assim as críticas formuladas eram duras e depressa tenderam a generalizar-se: segundo elas, o Estado falhara e falhara mais uma vez. «O Estado» como quem diria «o governo».

Um excesso
Quem naquela tristíssima noite ouviu diversos canais da televisão portuguesa, sobretudo se privados, bem poderá ter admitido que o País está a ser gerido por um grupo de irresponsáveis que são culpados por uma espécie de crime continuado: o Estado cuja gestão lhes está entregue falha consecutivamente e dessas consecutivas falhas resultam mortes numerosas e outras abundantes desgraças.

A veemência com que tais falhas eram referidas quase levaria a crer que, se o Estado não falhasse tanto, as quatro vítimas da queda do helicóptero não teriam tido morte imediata e a tragédia recuaria para a condição de drama saldado por um final feliz. E esse tom manteve-se durante longo tempo: o protagonista do caso já não era o helicóptero caído, era o Estado que sempre falhava.

Não terá sido necessária grande perspicácia ou muito entendimento do modo como a televisão se comporta para se perceber que, na circunstância, quando ouvíamos referir «o Estado» de facto se estava a falar do governo conspurcado por uma espécie de pecado original: o de, apesar de ser um governo do PS, andar frequentemente com más companhias.

Da insistência com que as «falhas do Estado» eram aludidas quase se poderia concluir pela urgência na remoção do Executivo e a sua substituição por um governo que impeça tão numerosas e constantes falhas do Estado. Foi um excesso: aquela noite deveria impor uma contenção às tentações de fazer uma espécie de propaganda eleitoral sem princípios mas com fins.

É certo que não são excelentes as perspectivas da direita para os actos eleitorais a haver em 2019, mas é bonito, sim, que por vezes se respeitem alguns limites.

 



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