Álvaro Cunhal em Setúbal

Manuel Augusto Araújo

Em Setúbal, na Avenida Álvaro Cunhal a autarquia fez uma obra de requalificação para melhorar substancialmente as condições de circulação pedonal e de velocípedes e homenagear essa figura rara da história de Portugal pela sua dimensão de político e intelectual. Concretizou-se a homenagem recorrendo aos desenhos executados na prisão por Álvaro Cunhal colocados em painéis verticais na placa divisória central.

O primeiro impacto ao olhar para cada uma das reproduções é verificar a resistência à alteração de escala. Nas grandes ampliações a que naturalmente foram sujeitos os originais, folhas de papel de dimensões aproximadas de 25 por 40 centímetros para reproduções com mais de dois metros, não se perde nenhum dos valores plásticos dos desenhos seleccionados, o que evidencia a sua qualidade, o rigor do traço e das subtilezas das modelagens dos cinzentos todos feitos com lápis de grafite ou carvão com a mesma dureza.

As alterações de escala, sobretudo as com um índice desse teor, podem ter efeitos desastrosos por perda dos pormenores ou por tornarem os pormenores grosseiros. Aqui, o resultado é como se os desenhos tivessem sido feitos para se fixarem naquela dimensão final, o que demonstra a desenvoltura e a segurança do traço do artista.

A selecção dos desenhos foi feita a partir das duas séries conhecidas, uma feita na Penitenciária e outra no Forte de Peniche. É necessário sublinhar que esses desenhos são feitos em condições inenarráveis que condicionam a sua feitura, transformam a folha de papel branco numa janela da liberdade de que Álvaro Cunhal estava violentamente subtraído para aí, no tempo suspenso que estava a viver, inscrever a imaginação de memórias vividas e inventadas a partir da realidade.

Há grandes diferenças entre as duas séries de desenhos condicionadas pela luz que iluminava o papel. Na primeira série, feita sob luz artificial invariável, não existem grandes contrastes na vasta gama de cinzentos, o que surge na segunda, feita no ciclo normal da luz do dia, em que se verifica uma gradação do negro ao branco. Em todos nunca se sente a presença de traço rápido. Constroem-se com lentidão serena e intensa.

Protagonista colectivo

Os desenhos de Álvaro Cunhal são narrativas em que o protagonista é colectivo, é o povo. O povo a trabalhar, a lutar, a sofrer, o povo a enfrentar as suas misérias mas também a viver alegrias, festas, danças. Sempre o povo, mesmo quando as personagens são individualizadas em raras figuras isoladas, que são colocadas em diálogo connosco pelo autor, que lhes insufla a ternura firme que é a sua.

As movimentações dos protagonistas em espaços abertos, só em dois desenhos há referências ao território, num deles uma torre uma provável referência ao Forte de Peniche, remetem-nos para o Trecentto italiano e para Giotto. A fortíssima dinâmica que imprime aos movimentos dos personagens a Pietr Brueghel, o Velho, recuperados para um contexto neo-realista onde são evidentes as influências de Portinari, dos muralistas mexicanos, sobretudo Orozco e Siqueiros, em que frequentemente o ponto de vista do pintor por vezes é elevado e colocado no meio da acção.

As anatomias dos protagonistas e dos instrumentos de trabalho são alteradas, exageradas para sublinhar emocionalmente a história que está a ser registada e contada e que é tão forte que todos os desenhos dispensam títulos antecipando o que Álvaro Cunhal escreverá em A Arte, o Artista e a Sociedade: «o significado social não precisa de ser explicitado para ser suficientemente expressivo.» No caso é tão expressivo que dispensa rótulos.

Estes desenhos remetem-nos para outra questão: que artista teria sido Álvaro Cunhal sem «o absorvente empenhamento noutra direcção de actividade», como refere no prefácio ao ensaio referido. O que fica e é inapagável é a sua impar dimensão de político e intelectual que continua e continuará a ser uma fonte inesgotável de ensinamentos e de estudo.




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