A cultura, olé!

Correia da Fonseca

Nos diversos canais que globalmente enformam a chamada televisão portuguesa não se fala muito de cultura, fala-se muito mais de futebol. Entende-se: não apenas «a bola» mobiliza muitíssimo mais a atenção e as paixões dos portugueses como envolve também muitíssimo mais dinheiros, e é claro que onde estão dinheiros avultados está a atenção da TV. Aconteceu agora, porém, que na televisão e também fora dela ocorreu um surto de alusões e invocações da cultura dir-se-ia que chegadas por força dos cornos taurinos. Não há nada de inconveniente nisso, as hastes dos touros, os touros na sua integralidade e os espectáculos que marcam o seu triste destino final são temas tão respeitáveis como quaisquer outros, a questão possível é que surjam como assunto controverso legitimado pelas circunstâncias. Ora, neste caso a circunstância era e é perfeitamente legítima e até revestida de dignidade: tratou-se de um episódio parlamentar vinculado à discussão do OE, o orçamento do Estado, com particular incidência sobre a taxa de IVA a ser aplicada nos espectáculos de carácter cultural. Assim, ser ou não ser cultural era a questão que a tourada punha aos parlamentares, de um modo mais amplo ao País e, na noite de segunda-feira, aos participantes no «Prós e Contras» e aos telespectadores do programa.

Como todo o resto

Compreender-se-á que esta espécie de triângulo «touradas-cultura-impostos» tenha trazido às atenções distraídas, e também às outras, a posição dos conteúdos culturais ou culturalizantes nas «grelhas» da RTP: antes do mais, o facto de os programas sujeitos à qualificação quase humilhante de «culturais» serem sistematicamente deportados para a RTP2, canal que a própria designação denuncia como secundário, o que implica a secundarização tácita dos seus conteúdos. A esta regra acresce que alguns programas com mérito cultural, concertos da grande música e outros momentos relevantes para uma TV «culta e adulta» (como a «2» gosta de dizer de si própria numa quase indecorosa vertigem de auto-elogio) são transmitidos nas madrugadas ou nos seus arredores horários, assim se garantindo aos telespectadores que não se trata de nada que possa interessar-lhes muito. Ora, acontece que as touradas transmitidas pela RTP o são logo a seguir à hora de jantar e obviamente para proveito e gozo de toda a família, criançada incluída, o que parece indicar que não são matéria cultural e por consequência não incorrendo na habitual pena de deportação para a vizinhança das madrugadas. Aí está, pois, uma peça argumentária em desfavor da aplicação às touradas da taxa reduzida aplicável aos eventos culturais, mas é claro que não cabe a esta coluna optar por uma ou outra posição: chegará, espera-se, o registo da polémica e da sua chegada à televisão pública. Ficando o resto à conta do cidadão eleitor. Como aliás todo o resto.




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