A viragem
Ao fim do serão do passado sábado, a RTP transmitiu o filme «Stalinegrado», de Fiodor Bondarchuck, e esse facto merece registo por alguns motivos. Um deles é a circunstância de ser um filme russo, e bem se sabe que tudo o que vem da Rússia tem agora uma espécie de conotação pestífera quase tão intensa quanto a que durante o fascismo tinha quanto vinha da URSS. Outro motivo de registo é que a transmissão de «Stalinegrado» parece confirmar o alargamento de critérios da RTP no sentido de transmitir produções europeias contrariando a tradicional hegemonia USA, o que fica bem à operadora estatal de um país que se reafirma europeu mas não em todos os sectores de actividade. Para mais, acontece que entre nós parece muitas vezes esquecer-se que a Rússia é Europa pelo menos até aos Urais, do que resulta que na Rússia europeia cabe mais que uma meia dúzia de outros países europeus de dimensão média. Quanto ao filme de Bondarchuck, não poderá talvez dizer-se que o seu objectivo maior foi o de celebrar mais uma vez a resistência soviética à ofensiva nazi naquele sector, pois que um dramático fio sentimental se infiltra na narração, mas a epopeia está lá como presença maior e acaba inevitavelmente por se tornar a verdadeira protagonista.
«Entre la noche y el alba»
Como é sabido mas não muito lembrado entre nós, a derrota do exército nazi na batalha de Stalinegrado que durou desde o Verão de 42 até Fevereiro de 43 marcou o princípio da derrota da Alemanha hitleriana na Segunda Guerra Mundial e, como as datas comprovam, ocorreu muito antes do desembarque dos aliados ocidentais na Normandia (só realizado em Junho de 44) que finalmente concretizou o estabelecimento da Segunda Frente longamente prometida e por razões óbvias muito ansiada pela URSS. Há mesmo muita gente a suspeitar de que a essa prolongada demora não seria alheio o inconfessado desejo anglo-americano de ir permitindo que os nazis tivessem por mais algum tempo as mãos livres para irem massacrando russos, que sempre eram comunistas. Mas os alemães foram batidos, iniciou-se ali o seu recuo até Berlim e em Janeiro de 43 Pablo Neruda escreveu o seu verso lapidar: «Este es el canto entre la noche y el alba». Em verdade, foi naquela síntese de metralha e sangue, de horror e coragem, que começou a despontar a libertação da Europa calcada pela bota nazi. O filme de Bondarchuck, longe de ser um panfleto, fala desse momento. E a RTP é credora de aplauso por tê-lo transmitido.