Comentário

A UE e o princípio da precaução

Miguel Viegas

O cha­mado prin­cípio da pre­caução ex­pressa que, na au­sência de con­senso ci­en­tí­fico ir­re­fu­tável re­la­ti­va­mente aos riscos am­bi­en­tais de um de­ter­mi­nado acto, seja in­ver­tido o ónus da prova. Dito de outra forma, cabe ao pro­po­nente provar que a sua ação não irá causar danos am­bi­en­tais ou à saúde pú­blica. Pode pa­recer ele­mentar mas a ver­dade é que este prin­cípio não está con­sa­grado no or­de­na­mento ju­rí­dico dos Es­tados Unidos ou no Ca­nadá.

O prin­cípio da pre­caução surge na De­cla­ração do Rio de 1992 e ge­ne­ra­liza-se pos­te­ri­or­mente a di­versos tra­tados e con­ven­ções in­ter­na­ci­o­nais sobre am­bi­ente e re­cursos na­tu­rais. Apa­rece no Tra­tado de Ma­as­tricht, que ins­titui a União Eu­ro­peia e é ob­jecto em 2000 de uma co­mu­ni­cação da Co­missão Eu­ro­peia («Modo de uti­lizar o prin­cípio de Pre­caução»).1 Se­gundo o Prin­cípio 15 da De­cla­ração de Rio92: «Para que o am­bi­ente seja pro­te­gido, serão apli­cadas pelos Es­tados, de acordo com as suas ca­pa­ci­dades, me­didas pre­ven­tivas. Onde existam ame­aças de riscos sé­rios ou ir­re­ver­sí­veis, não será uti­li­zada a falta de cer­teza ci­en­tí­fica total como razão para o adi­a­mento de me­didas efi­cazes, em termos de custo, para evitar a de­gra­dação am­bi­ental». Um acórdão de 2002 do Tri­bunal de Jus­tiça da União Eu­ro­peia (TJUE) nega um re­curso da far­ma­cêu­tica mul­ti­na­ci­onal Pfizer contra a re­ti­rada da vir­gi­ni­a­mi­cina, um an­ti­bió­tico de uso ve­te­ri­nário sobre o qual re­caiam dú­vidas sobre a trans­missão de re­sis­tên­cias a ou­tros an­ti­bió­ticos de uso hu­mano. A fun­da­men­tação as­senta no prin­cípio da pre­caução.

Vem esta in­tro­dução a pro­pó­sito de uma in­qui­e­tante de­cisão do TJUE do pas­sado dia 17 de Maio que deu razão à mul­ti­na­ci­onal BASF contra a mo­ra­tória de 2013 que in­tro­duzia li­mi­ta­ções ao uso do fi­pronil. O fi­pronil, in­sec­ti­cida per­tence à fa­mília dos ne­o­ni­co­ti­noides, está as­so­ciado à morte das abe­lhas. Tem efeitos ne­fastos para a saúde hu­mana e está por isso proi­bido em es­pé­cies ani­mais de con­sumo hu­mano. Ou seja, num mo­mento em que as al­te­ra­ções cli­má­ticas e a di­mi­nuição drás­tica da bi­o­di­ver­si­dade estão ao rubro, o mí­nimo que se pode dizer é que esta ma­cha­dada no prin­cípio da pre­caução vem na pior al­tura. No seu acórdão, o TJUE alega que não houve uma aná­lise de im­pacto prévia à im­po­sição das res­tri­ções do uso do fi­pronil (a mo­ra­tória proíbe o seu uso na colza, milho e ou­tros ce­reais). Mas que im­pacto es­tamos a falar: dos lu­cros da BASF? Onde fica a al­te­ração do ónus da prova pre­visto no prin­cípio da pre­caução?

Não cremos que a UE tenha mu­dado. Con­tudo, é ine­gável que o seu ca­ráter de classe e a sua na­tu­reza ne­o­li­beral, fe­de­ra­lista e mi­li­ta­rista se re­vela de forma mais evi­dente à me­dida que se apro­fundam as suas con­tra­di­ções, elas pró­prias in­dis­so­ciá­veis da crise do ca­pi­ta­lismo. Todos se re­cordam dos dois acór­dãos Vi­king e Laval que su­bor­di­naram o di­reito à greve às li­ber­dades eco­nó­micas no mer­cado in­terno. Este exemplo sobre o prin­cípio da pre­caução apenas de­monstra mais uma vez a quem serve a União Eu­ro­peia e as suas ins­ti­tui­ções.

1 https://​eur-lex.eu­ropa.eu/​legal-con­tent/​PT/​TXT/?​uri=celex%3A52000DC00011

 



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