Os universos temáticos de Maria Velho da Costa
A melhor homenagem a Maria Velho da Costa, que celebra este mês 80 anos, é ler a sua
LUSA
Quando em Maio de 1971 «as mãos de 3 aranhas astuciosas» (Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa) iniciaram a escrita de Novas Cartas Portuguesas, tendo por matriz o texto Cartas Portuguesas, atribuído a Mariana Alcoforado, estariam por certo longe de imaginar o torvelinho que a sua publicação, em 1972, iria provocar no País sisudo, amargo e triste de Salazar e Caetano.
A propalada Primavera Marcelista ficava, através da persecutória investida sobre um livro, posta a nu. O embuste não resistiu a um livro que falava da mulher, do seu corpo e da liberdade de o usar; do prazer e do amor compartilhado. O livro, como era usual nestes tempos de bruma, foi retirado das livrarias 3 dias após o seu lançamento. O pretexto, segundo a omnipresente PIDE, na versão beata DGS, seria a de o conteúdo ser «insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública». Seguiram-se os processos-crime, as audiências e toda a parafernália de acções de cerco e ameaças que o poder fascista usava em casos que tais. A Revolução de Abril poria fim a mais este funesto atentado à cultura e à livre expressão das ideias.
Mais do que tematizar a libido, as complexas relações nas sociedades contemporâneas, as Novas Cartas Portuguesas denunciavam a situação política do País, a guerra colonial, o poder judicial e suas manhas, a condição da mulher numa sociedade conservadora e fortemente padronizada pelo homem, a emigração (mais de 2 milhões de portugueses haviam saído do País), a falta de perspectivas para os jovens.
No livro Cravo, numa prosa solar, libertária, de afirmação revolucionária, Maria Velho da Costa regressará a estes temas, incluindo nesse magnífico acervo da nossa memória colectiva, o Poema Revolução e Mulher, no qual define com clareza o papel e a igualdade da mulher numa sociedade livre: Elas diziam tu às pessoas com estudos/ e aos outros homens/ Elas iam e não sabiam para onde, mas iam (...) Elas aprenderam a mexer nos livros de contas/ e nas alfaias das herdades abandonadas/ Elas dobraram em quatro um papel/ que levava dentro uma cruzinha laboriosa.
Em 1969, com a publicação de Maina Mendes, Velho da Costa percorrerá, numa prosa poética que nos reconduz às raízes da língua, esse conturbado mundo interior, esse universo ancho das mulheres que se recusam à submissão e ao ultraje, que assumem até ao desespero e à raiva a recusa de um mundo comandado pelos homens, feito à sua vontade.
Missa in Albis1 é uma das obras centrais do universo temático da autora de Lucialima. Nela coabitam várias abordagens sobre o amor e seus excessos, os mitos que se desfazem e transfiguram. Tendo como base de explanação e suporte ficcional, a celebração da Missa da Oitava Páscoa, que o título latino da obra acentua, o romance diz-nos da paixão, da angústia, da morte, num registo romântico que lembra Camilo. As epígrafes irão acompanhar a estrutura romanesca desta obra singular, como um pré-texto introdutório ao desenvolvimento lúdico do amor fatal de Sara e Simão, acrescentado-lhe o medo e o terror salazarista.
As personagens femininas de Velho da Costa possuem um ambíguo sentido de transcendência, que não procura resgate mas afirmação face ao caos do mundo; busca uma identidade superlativa e resistente que enfrente dúvidas e caminhos percorridos às cegas. Há nessas personagens uma modelar voz intemporal, da essência, do que redime ou mata, algo de poroso e selvagem como em Maina Mendes, ou de absoluto desespero como em Sara, de Missa in Albis. Com elas a autora alargou os limites da língua, a intensidade semântica, as ressonâncias imagísticas da Literatura feita em português.
Nos 80 anos de Maria Velho da Costa, que este mês se celebram, para além do sentido abraço que aqui lhe deixamos, o mais profícuo e justo brinde será lê-la, não perder o mágico fio de prumo dessa prosa única e fecunda.
1 Chamo a atenção para o magnífico prefácio de Manuel Gusmão, que acompanha a edição de Missa in Albis