Bento de Jesus Caraça e a criação da Biblioteca Cosmos

Jorge Rezende

CUL­TURA Quando se cum­prem 77 anos sobre a cri­ação e 70 sobre o fim da Bi­bli­o­teca Cosmos, em Junho de 1948, evoca-se a im­por­tância deste pro­jecto para a di­vul­gação ci­en­tí­fica em Por­tugal e a re­le­vante acção de Bento de Jesus Ca­raça como mi­li­tante da cul­tura in­te­gral do in­di­víduo.

A Bi­bli­o­teca Cosmos pu­blicou quase 800 mil exem­plares de li­vros das mais va­ri­adas áreas

Bento de Jesus Ca­raça nasceu em 1901, em Vila Vi­çosa, filho de tra­ba­lha­dores ru­rais. Viveu os pri­meiros anos da sua vida na Her­dade da Casa Branca, na fre­guesia de Mon­toito, onde aprendeu a ler e a es­crever com um tra­ba­lhador. Tendo no­tado a sua grande in­te­li­gência, a es­posa do pa­trão do pai de­cidiu en­car­regar-se dele e cus­tear os seus es­tudos.

Foi sempre um aluno muito bri­lhante, tendo fre­quen­tado li­ceus em San­tarém e Lisboa (Pedro Nunes) e en­trado para o Ins­ti­tuto Su­pe­rior do Co­mércio, mais tarde de­sig­nado Ins­ti­tuto Su­pe­rior de Ci­ên­cias Eco­nó­micas e Fi­nan­ceiras (ISCEF) – o ac­tual Ins­ti­tuto Su­pe­rior de Eco­nomia e Gestão (ISEG) – onde ter­minou o curso em 1923. Ainda es­tu­dante, foi Se­gundo As­sis­tente de Au­re­liano de Mira Fer­nandes. Passou a Pri­meiro As­sis­tente em 1924 e foi no­meado Pro­fessor Ca­te­drá­tico em De­zembro de 1929, a pouco tempo de com­pletar apenas 29 anos.

Nos anos 30 era já uma pessoa com um enorme pres­tígio, so­bre­tudo entre a ju­ven­tude. Isso deve-se prin­ci­pal­mente ao facto de ter sido um dos fun­da­dores da Uni­ver­si­dade Po­pular Por­tu­guesa (com apenas 18 anos!), tendo che­gado à sua pre­si­dência em 1928, ini­ci­ando a sua re­ac­ti­vação e re­or­ga­ni­zação. Foi aí e nou­tras as­so­ci­a­ções que deu as suas cé­le­bres con­fe­rên­cias que co­me­çaram a fazer dele uma fi­gura len­dária entre as classes po­pu­lares. De entre aquelas que fi­caram cé­le­bres des­taco A Vida e Obra de Eva­risto Ga­lois, em 1932; Ga­lileo Ga­lilei – valor ci­en­tí­fico e valor moral da sua obra, em 1933; Es­cola Única, em 1935; e, par­ti­cu­lar­mente, A Cul­tura In­te­gral do In­di­víduo – pro­blema cen­tral do nosso tempo», de 1933.1

Também con­tri­buíram para o seu pres­tígio os inú­meros ar­tigos que es­creveu para al­gumas re­vistas, como, por exemplo, A Luta Contra a Guerra, de 1932; Abel e Ga­lois, de 1940; Ga­lileo e Newton, de 1942. Res­pon­dendo a crí­ticas de An­tónio Sérgio, trocou com este vá­rias cartas, na re­vista Vér­tice, em 1946, que fi­caram cé­le­bres como uma das mais im­por­tantes dis­putas ide­o­ló­gicas do nosso sé­culo XX.2

O Mo­vi­mento Ma­te­má­tico

Em 1936 é fun­dado o Nú­cleo de Ma­te­má­tica, Fí­sica e Quí­mica, em Lisboa, cujos prin­ci­pais im­pul­si­o­na­dores são An­tónio da Sil­veira, Ma­nuel Va­la­dares e An­tónio Ani­ceto Mon­teiro. Com o Nú­cleo dá-se início a um mo­vi­mento muito mais amplo de re­no­vação ci­en­tí­fica em moldes mo­dernos e com pa­drões in­ter­na­ci­o­nais que, na ma­te­má­tica, veio a ser co­nhe­cido como Mo­vi­mento Ma­te­má­tico e que só foi ani­qui­lado em 1946-1947 com as ex­pul­sões de muitos pro­fes­sores uni­ver­si­tá­rios.

O Nú­cleo con­tava também com a co­la­bo­ração muito ac­tiva de Bento de Jesus Ca­raça, que foi um dos seus fun­da­dores – o único que não tinha feito es­tudos de dou­to­ra­mento no es­tran­geiro – tendo sido ele a dar início às suas ac­ti­vi­dades em 16 de No­vembro com a pri­meira lição de um curso sobre Cál­culo Vec­to­rial.

Criado com am­bi­ções mais vastas, no­me­a­da­mente no que diz res­peito à in­ves­ti­gação ci­en­tí­fica, o Nú­cleo li­mitou-se es­sen­ci­al­mente a mi­nis­trar cursos de ele­vado nível, o pri­meiro dos quais foi o de Bento Ca­raça. A ideia era a de serem pu­bli­cados em livro, o que só acabou por ser feito com os mi­nis­trados por Bento de Jesus Ca­raça, Ruy Luís Gomes e Amorim Fer­reira, em edi­ções de muito boa qua­li­dade. Em­bora o fas­cismo lhe ti­vesse mo­vido per­se­gui­ções di­versas, entre as quais di­fi­cul­tando a uti­li­zação das Uni­ver­si­dades, o Nú­cleo acabou por se dis­solver, por di­ver­gên­cias in­ternas, em 6 de No­vembro de 1939.

Mas o Mo­vi­mento Ma­te­má­tico – cujas prin­ci­pais fi­guras foram An­tónio Ani­ceto Mon­teiro, Bento Ca­raça e Ruy Luís Gomes – tinha já dado início a mais ini­ci­a­tivas que, essas, con­ti­nu­aram. Des­ta­carei apenas aquelas em que Bento Ca­raça par­ti­cipou. Com Au­re­liano de Mira Fer­nandes e Ca­e­tano Maria Beirão da Veiga fundou, em 1938, o Centro de Es­tudos de Ma­te­má­ticas Apli­cadas à Eco­nomia, no ISCEF, onde os três eram pro­fes­sores. Foi seu di­rector até à sua ex­tinção, por de­cisão mi­nis­te­rial, em Ou­tubro de 1946.

Fundou, em 1939, com An­tónio Mon­teiro, Hugo Ri­beiro, José da Silva Paulo e Ma­nuel Za­luar, a Ga­zeta de Ma­te­má­tica, cujo pri­meiro nú­mero saiu em Ja­neiro de 1940.

Par­ti­cipou na fun­dação da So­ci­e­dade Por­tu­guesa de Ma­te­má­tica (SPM), em 12 de De­zembro de 1940, tendo sido pre­si­dente da sua di­recção no biénio de 1943-1944.

Re­sis­tência ao fas­cismo

Bento de Jesus Ca­raça par­ti­cipou também ac­ti­va­mente na re­sis­tência po­lí­tica semi-clan­des­tina e clan­des­tina. Des­taco a sua par­ti­ci­pação no MUNAF e no MUD.

Em De­zembro de 1943 cons­ti­tuiu-se, na clan­des­ti­ni­dade, o Con­selho Na­ci­onal de Uni­dade An­ti­fas­cista, órgão de di­recção do Mo­vi­mento Na­ci­onal de Uni­dade An­ti­fas­cista» (MUNAF). Álvaro Cu­nhal re­corda esse facto assim: «O êxito deveu-se em grande parte à acção de B. Ca­raça, como mi­li­tante do Par­tido, graças à sua in­fluência nos meios in­te­lec­tuais e entre os an­ti­fas­cistas. Acom­pa­nhei muito de perto toda essa acção. (...) O Avante! de Ja­neiro de 1944 con­fir­mando a cri­ação do MUNAF anun­ciava a for­mação do Con­selho Na­ci­onal em que ini­ci­al­mente en­trámos, como re­pre­sen­tantes do PCP, B. Ca­raça e eu pró­prio».3

Em 1945, com o fim da guerra, na sequência das ma­ni­fes­ta­ções de rua co­me­mo­rando a vi­tória sobre o nazi-fas­cismo, foi fun­dado o Mo­vi­mento de Uni­dade De­mo­crá­tica (MUD), a cuja Co­missão Cen­tral per­tencia Bento de Jesus Ca­raça. Em 1946 o MUD pu­blica o do­cu­mento O MUD pe­rante a ad­missão de Por­tugal na ONU, as­si­nado pela res­pec­tiva Co­missão Cen­tral, o que con­duziu à ex­pulsão da Uni­ver­si­dade Téc­nica de Bento de Jesus Ca­raça e Mário de Aze­vedo Gomes por des­pacho do Mi­nistro da Edu­cação Na­ci­onal.

Di­vulgar e po­pu­la­rizar a ci­ência

Bento Ca­raça viria a morrer dois anos de­pois. Ruy Luís Gomes es­creveu o se­guinte na Ga­zeta de Ma­te­má­tica que as­si­nala o seu fa­le­ci­mento: «Na ver­dade, Bento Ca­raça per­tenceu ainda a uma ge­ração que fez a sua pró­pria pre­pa­ração, no do­mínio da Ma­te­má­tica, numa época em que as nossas Es­colas Su­pe­ri­ores es­tavam in­tei­ra­mente en­for­madas pelo velho e de­sas­troso con­ceito de que se pode ser um grande pro­fessor uni­ver­si­tário sem nunca se ter pa­ten­teado, na aná­lise exaus­tiva de algum pro­blema con­creto, a garra ou, pelo menos, o sen­tido de in­ves­ti­gador. (...)

Bento Ca­raça não foi, pois, um in­ves­ti­gador, mas su­pe­rando o meio em que foi edu­cado e lan­çando-se desde muito novo nas ta­refas do en­sino, em breve se juntou aos que deram o pri­meiro passo para fazer triunfar nas nossas Es­colas Su­pe­ri­ores uma nova con­cepção da vida uni­ver­si­tária».4

Não foi só o acaso que levou a que tenha sido Bento de Jesus Ca­raça a fazer as pa­les­tras que marcam his­to­ri­ca­mente o início do Mo­vi­mento Ma­te­má­tico e que a sua ex­pulsão em 1946 e a sua morte em 1948 te­nham coin­ci­dido com o ani­qui­la­mento, pelo fas­cismo, da­quele mo­vi­mento de re­no­vação ci­en­tí­fica. De facto, Bento de Jesus Ca­raça sim­bo­liza uma época de re­sis­tência e de luta pela mo­der­ni­zação, pela di­vul­gação e pela po­pu­la­ri­zação da ci­ência em Por­tugal.

Sim­bo­liza ainda toda uma ge­ração de ci­en­tistas, de in­te­lec­tuais, de tra­ba­lha­dores, de jo­vens que lu­taram pelo acesso do povo ao en­sino, à cul­tura, à ci­ência, à paz e à li­ber­dade.

A mais im­por­tante ini­ci­a­tiva
de di­vul­gação da Ci­ência e da Cul­tura

Em 1941, Bento de Jesus Ca­raça fundou a Bi­bli­o­teca Cosmos – de que foi o único di­rector até Junho de 1948 –, a grande res­posta cul­tural ade­quada ao am­bi­ente de re­pressão exis­tente. A Bi­bli­o­teca Cosmos editou «145 nú­meros cor­res­pon­dendo a 114 tí­tulos agru­pados em sete sec­ções»5, «com uma ti­ragem global de 793 500 exem­plares»6, e cons­ti­tuiu a mais im­por­tante ini­ci­a­tiva de di­vul­gação da ci­ência e da cul­tura re­a­li­zada em Por­tugal no sé­culo XX. An­tónio Dias Lou­renço conta assim como nasceu a Cosmos7.

«Em Angra [do He­roísmo, na prisão], Ma­nuel Ro­dri­gues [de Oli­veira] en­con­trou-se com o Bento Gon­çalves, já então co­nhe­cido como se­cre­tário-geral do PCP, e co­locou-lhe uma questão: “Ó Bento – eu tenho umas co­roas e não sei que lhes hei-de fazer. Está-me a custar perder aquilo de qual­quer ma­neira... Tens al­guma ideia da uti­li­dade possam vir a ter?”. E o Bento Gon­çalves res­pondeu: “Sim. Tu podes avançar com uma edi­tora de li­vros vi­rados para a cul­tura po­pular. Bem feitos, para passar as ma­lhas do fas­cismo. E podes fazer uma coisa com grande ex­pansão – cul­tural e re­vo­lu­ci­o­nária. E olha – a pessoa in­di­cada para di­rigir isso é o pro­fessor Bento de Jesus Ca­raça. Vais ter com ele – dizes que vais da minha parte – e pões-lhe esse pro­blema”. Bento de Jesus Ca­raça aceitou a pro­posta e as­sumiu a di­recção da co­lecção. Foi este o ponto de par­tida para a cri­ação da Cosmos».

Foi na Bi­bli­o­teca Cosmos que pu­blicou os dois pri­meiros vo­lumes do seu livro Con­ceitos Fun­da­men­tais da Ma­te­má­tica, e que só em 1951 seria pu­bli­cado na ín­tegra. É aqui que Bento de Jesus Ca­raça mostra as suas ex­tra­or­di­ná­rias qua­li­dades de di­vul­gador da Ma­te­má­tica. Este seu livro cons­titui uma obra que con­tinua a ser re­fe­rência para quem se quiser ini­ciar nos as­pectos téc­nicos, his­tó­ricos e fi­lo­só­ficos desta Ci­ência. Mantém-se, sem dú­vida, até os nossos dias, como o me­lhor livro de di­vul­gação de Ma­te­má­tica es­crito por um por­tu­guês.

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1 Bento de Jesus Ca­raça, Con­fe­rên­cias e ou­tros es­critos. Lisboa, 1978.

2 Idem, ibidem.

3 Álvaro Cu­nhal, Bento Ca­raça – in­signe in­te­lec­tual co­mu­nista.

http://​www.pcp.pt/​actpol/​temas/​100-bento-jesus-ca­raca/​in­signe-in­te­lec­tual-co­mu­nista.html

4 Ruy Luís Gomes, Bento Ca­raça, grande edu­cador. Em «Ga­zeta de Ma­te­má­tica» 37-38, Agosto-De­zembro de 1948. in http://​ruy­luis­gomes.blogspot.com/​2008/​11/​bento-caraa-in­signe-in­te­lec­tual.html

5 An­tónio de Se­queira Zi­lhão, O Prof. Bento de Jesus Ca­raça, LER edi­tora, Lisboa, 1981.

6 Ma­nuel Ro­dri­gues de Oli­veira, Bi­bli­o­teca Cosmos -114 tí­tulos com uma ti­ragem média de 6960 exem­plares. Em «Seara Nova» 1472 de Junho de 1968, Bento de Jesus Ca­raça no 20° ani­ver­sário da sua morte – pre­sença e ac­tu­a­li­dade.

7An­tónio Dias Lou­renço, Bento de Jesus Ca­raça era uma pessoa ad­mi­rável. http://​www.pcp.pt/​actpol/​temas/​100-bento-jesus-ca­raca/​tes­te­munho-dias-lou­renco.html

 



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