Ferreira de Castro e o realismo social

Domingos Lobo

A obra que o tornará conhecido internacionalmente é, sem dúvida, A Selva

Se vivo, Ferreira de Castro (1898/1974) faria, a 24 de Maio, 120 anos. A sua pujante obra romanesca, iniciada aos 18 anos com o romance Criminoso por Ambição, faz a transição entre o naturalismo de pendor humanista, de finais do século XIX (João Grave, Albino Forjaz de Sampaio, Manuel Ribeiro, Assis Esperança) e o neo-realismo, inaugurando uma fase de abordagem crítica da realidade política e social do País (e do Brasil) penetrando o seu húmus e revelando um mundo desigual, de explorados e exploradores, as feridas do sistema capitalista, a situação de semi-escravatura vivida pelos assalariados (em A Selva), buscando nessa denúncia libertar o homem das malhas opressivas que o tolhem.

É através do romance Emigrantes, publicado em 1928, que Ferreira de Castro inaugura na nossa ficção o realismo social, inscrevendo nessa linha teórica e estética romances como A Lã e a Neve, Terra Fria, Na Curva da Estrada, O Instinto Supremo.

Nascido em Ossela, Oliveira de Azeméis, filho de camponeses pobres, Ferreira de Castro emigra para o Brasil com 12 anos de idade, em busca do El Dourado. Mas a fortuna, a árvore das patacas não aconteceu ao autor de A Missão: para o Brasil partiu com uma mão cheia de nada e de lá regressou com outra cheia de coisa nenhuma, como, de resto, viria a acontecer com Alves Redol, anos mais tarde, em terras de Angola. Mas a experiência de quatro anos vividos no seringal Paraíso, em plena selva amazónica, haveria de constituir-se determinante experiência humana e linimento para a sua produção ficcional futura. O jovem emigrante recolheria nesse amplo espaço natural, através de trabalhos duros, humilhantes e infra-humanos, mas igualmente em Belém do Pará, em S. Paulo e no Rio de Janeiro, elementos e vivências que lhe permitiram construir, erguer os fundamentos do realismo social, uma obra de 31 livros, entre romances, memórias de viagens e ensaio sobre arte, tornando-se o escritor português mais traduzido e conhecido do seu tempo e um dos mais prestigiados e universalmente estudados de toda a nossa Literatura: só Saramago, décadas depois, conseguiria prestígio e reconhecimento semelhante.

Arte visionária

É numa viagem a Manaus que Ferreira de Castro, em contacto com outros compatriotas pobres que no Brasil não encontraram o paraíso prometido, obterá os elementos que lhe permitiram a elaboração do livro Emigrantes, a sua primeira obra de fôlego, na qual se detecta já a estrutura novelesca, o estilo narrativo que edificará o melhor da sua vasta obra. O profundo humanismo de Ferreira de Castro está patente na forma como olha para esse Manuel da Bossa desapossado, pela usura, dos resquícios de orgulho que o fizeram abandonar o chão de origem, como lhe percorre os sobressaltos das noites despovoadas.

A sua obra-prima, a obra que o tornará conhecido internacionalmente é, sem dúvida, A Selva. Óscar Lopes dirá que este romance transporta graças à riqueza da sua experiência social objectiva e à grandeza epopeica do ambiente natural (...) a sua largueza de compreensão humanista.

O teórico alemão Wolfgang Kayser, refere, no ensaio Análise e Interpretação da Obra Literária, que A Selva «é nitidamente um romance de espaço», de um «espaço geográfico e telúrico, em que se vem inscrever o espaço social».

A arte literária de Ferreira de Castro é visionária, não só porque antecipa, brilhantemente, o humanismo neo-realista, mas por abrir à literatura outros horizontes geográficos e civilizacionais até então ausentes da nossa ficção narrativa: a vida na selva amazónica, a emigração, as preocupações ecológicas, um mundo dilacerado e trágico: a perplexidade existencial do homem contemporâneo – e razões substantivas que se prendem com a ética e a ideologia.

A obra de Ferreira de Castro justifica plenamente uma redescoberta: a sua obra completa está de novo a ser editada, em edições cuidadas, pela editora Cavalo de Ferro.

 



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