Cultura e alienação

Manuel Augusto Araújo

A Cultura é um exercício de criação, de liberdade, de resistência

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Nas últimas décadas, o desinvestimento na cultura enquanto serviço público atira-a para a fogueira unidimensional do mercado. A cultura, que deveria assegurar o direito de todos ao acesso, à criação e à fruição cultural e ser elemento central na formação da consciência da soberania e da identidade nacional, dialogando, de igual para igual, com a cultura de todos os povos do mundo, tornou-se numa vulgar mercadoria. Dentro da lógica mercantilista que o capitalismo neoliberal procura impor a todas as esferas da actividade social e humana, procura-se subordinar as políticas culturais do Estado às normas do mercado que não conhece outra lógica que não seja a do que é vendável, o seu único critério de excelência que reduz o juízo crítico a uma espécie de crónica de promoção publicitária das artes e dos artistas sem colocar questões de ordem estética, poética ou até relacionadas com as histórias de arte.

Procura-se legitimar essa situação com a apresentação estatística do crescimento do sector económico das chamadas indústrias culturais e criativas que teriam impacto cada vez maior no contexto das actividades económicas. Para alcançar esses resultados vale (quase) tudo. Na Europa, depois de falhada a tentativa de tentar subordinar as actividades artísticas e culturais aos critérios e ditames da Organização Mundial do Comércio, começou-se a medir a importância da dimensão económica do sector cultural com as Contas Satélite da Cultura, uma prática em uso, com pequenas diferenciações metodológicas, em países como Espanha, Finlândia, Polónia, República Checa ou Portugal.

A questão central é o que se considera passível de integrar com o rótulo de actividade cultural. Na Conta Satélite da Cultura em Portugal, como nos outros países, o sector com maior impacto é o dos Livros e Publicações, não só pela dimensão como pelo número de empregos que gera. O que os números grossos ocultam é que a produção de livros é bem menor do que a das publicações e que nas publicações, em Portugal, as duas de carácter cultural, o semanário JL e a revista Ler, além de serem uma quase excrescência no conjunto das publicações, têm tiragens «desprezíveis», 10 000 e 7 000 respectivamente, se comparadas com A Maria, 167 000, ou os três jornais diários desportivos, A Bola, 120 000, Record 70 000, O Jogo, 30 000. Por essa amostra se vê a grande mistificação que são as Contas Satélites da Cultura, num país em que é bem conhecida a iliteracia e o sector editorial e livreiro se debate com gravíssimos problemas de sobrevivência. Os outros sectores de actividade seguem o mesmo caminho e critérios. No Audiovisual e Multimédia equivalem-se os videojogos e os filmes publicitários aos filmes documentais e de ficção. Sintomaticamente as áreas de actividade com menor expressão são o Património, as Bibliotecas, Arquivos e Artes de Espectáculo, mesmo que nas Artes de Espectáculo coexistam Gil Vicente e Tony Carreira. Não pode causar algum espanto que a Publicidade apareça como uma actividade cultural nesse saco onde os valores imateriais da cultura, a sua capacidade de inovação e criação, de transmissão, difusão e debate de ideias, o seu peso simbólico e estruturante na memória colectiva de um povo são sacrificados nos altares da mercantilização para triunfo do mercador do arroz de Brecht que não sabe o que é o arroz, nunca viu o arroz, do arroz só conhece o preço.

Para a fornalha da iliteracia global

Servem essas pantominas para justificar o desinvestimento público na Cultura por se argumentar que, entregue a si próprio e com esses malabarismos, o seu peso económico esteja em crescimento na lógica de impactos máximos a qualquer preço e sem qualquer critério, com obsolescências imediatas ditadas pelas exigências da moda e do jogo do mercado. É assim a Cultura arrastada nesse sorvedouro em que a fruição cultural é alienada e alienante, reduzindo os padrões de exigência, tanto de produtores como de consumidores, corroídos pelos efeitos nefastos de uma generalizada oferta de entretenimento de produtos mercantis que não exigem reflexão nem sintonizam sentimentos e se afundam num perverso gosto homogeneizado e acéfalo que atira para a fornalha da iliteracia global um grupo crescente de pessoas que, por via da exclusão cultural, ficam cada vez mais afastadas da possibilidade de possuírem ferramentas para exercer os seus direitos de cidadania.

É uma lógica que esquece que a Cultura não é um empilhamento cego de conhecimentos, nem um exercício elitista de distinções, nem a lapidação de um suposto gosto. Que a Cultura é um exercício de criação, de liberdade, de resistência, de transformação da vida preservando memórias passadas e construindo memórias futuras. Que a Cultura tem um papel central a desempenhar na sociedade, assegurando o direito de todos ao acesso, à criação e à fruição cultural pelo que não pode ser abandonada à bitola dos mercados nem viver das sobras, dos restos dos orçamentos do Estado. A reivindicação de 1% para a Cultura é uma exigência para a sua afirmação e autonomia, contra a alienação da Cultura.




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