Bonecos de luz
Sentava-se nos degraus das casas que visitava para rasurar uma linha
Há uns anos largos dei de caras com um combate de boxe forçosamente importante, dado que a televisão o transmitiu. No zapping possível e rápido num tempo de poucos canais apanhei a estação, ouvi uma voz conhecida minha e estive naquela de quem será ela, a voz, questão resolvida por amabilidade televisiva logo depois, em forma de legenda num canto da pantalha: comentários de Romeu Correia. Esse mesmo, o autor de «O Vagabundo das Mãos de Ouro», de «Gandaia», de «Cais do Ginjal», estava ali, convicto, a falar da «nobre arte» com conhecimento de causa, olha-me o jogo de pés, belo «uppercut«, fantástico gancho de esquerda e por aí.
Sorri. Sabia que haveríamos de falar disto, eu naquele gozo amigo de dizer Quem vai à televisão sou eu, ó Romeu! Para me provares que também és dos que por lá aparecem até os murros dos outros te servem! Francamente!, e ele havia de rir, cúmplice, que eu sabia do jovem Romeu Henrique Correia, desportista de élite, boxeur durante três anos no Clube Lisgás, 18 combates, 17 vitórias, oito por KO, atleta, campeão, treinador de uma moçoila chamada Almerinda que, sob a sua batuta, foi cinco vezes campeã da região de Lisboa nas modalidades de peso, disco e dardo, tão bem correram os treinos que casaram e seguiram juntos, para além das pistas e dos rinques, durante os anos que a vida lhes deu.
Leio nos jornais coisas que sei: a Revolução de Outubro faz 100 anos; a grande e trágica inundação que nos atingiu faz 50 (e eu lá andei, por Alhandra, numa das brigadas de estudantes a tirar lodo das casas). Porém, gostaria de ler e de ver coisas sobre esse escritor, empregado que ia de porta em porta a fazer o que a profissão lhe mandava e, por vezes, se sentava nos degraus das casas que visitava para rasurar uma linha ou acrescentar outra acabadinha de lhe surgir e que era urgente passar ao papel. Faz 100 anos que nasceu Romeu Correia.
Galardões
Uma homenagem decorreu na sua terra de sempre, Almada. E ainda bem. Mas noutros lugares, pródigos em elevar quem porventura menos merecerá a exaltação, o pretexto que um centenário sempre é não colheu. É pena. Por isso apetece dizer e deixar impresso que Romeu Correia, tendo sempre gente do povo como inspiração e motivo, mereceu vários prémios, entre eles o Prémio da Crítica, 1962, com a peça «O Vagabundo das Mãos de Ouro», obra que também ganhou o Prémio de Honra – Óscares da Imprensa 1963, o Prémio de Teatro das Páginas Culturais da Imprensa Regional, 1965, com a peça «Bocage», o Prémio de Teatro – Óscares de Imprensa 1972 com a peça «Roberta», o Prémio Académico Ricardo Malheiros da Academia de Ciências de Lisboa 1976 pelos contos «Um Passo em Frente», ou o Prémio de Teatro 25 de Abril da Associação de Críticos de Teatro, 1984.
Falta um. Em 1972 Romeu Correia ganhou o Prémio Alfredo Cortez, do SNI (Secretariado Nacional de Informação, organismo de apoio ao regime fascista). Porém, esse galardão nunca lhe enfeitou as prateleiras, dado que, num acto coerente e corajoso, Romeu Correia recusou-se a recebê-lo...
Via-o frequentemente, cauteloso em não pisar as fronteiras do passeio, na Rua Capitão Leitão, atento ao trânsito, às mulheres bonitas que iam passando e, sobretudo, aos amigos, a quem dava sempre meia de conversa antes de entrar naquele café onde ocupava uma das mesas do fundo, escrevendo, com letra miudinha, em folhas impregnadas de cheiro a café e ansiosas por receber as suas palavras. Ou nós impacientes por lê-las, sabendo que continuaríamos a ser, todos, os heróis da sua prosa. E, já agora, espectadores cúmplices dos seus bonecos de luz.