Vergonhas, poucas ou muitas
Cousas surpreendentes traz a televisão a nossas casas, e entre elas esteve uma recente intervenção da dr.ª Assunção Cristas a propósito das cativações que vêm sendo decididas pelo governo e muito contestadas pela oposição. Como se sabe mas não fará mal recapitular, as cativações têm por objectivo impedir despesas orçamentalmente inscritas, desse modo conseguindo-se diminuir os custos públicos neste ou naquele sector comparativamente com o já autorizado quando da aprovação do Orçamento do Estado.
Assim, o primeiro motivo de surpresa é que a dr.ª Assunção, figura destacadíssima de uma oposição de direita que não se cansa de acusar a esquerda de inveterado despesismo, venha agora invectivar o governo por uma medida que a própria direita sempre utilizou. Um outro motivo de surpresa, porém, é talvez mais perturbante: é que a doutora, senhora bem educada e decerto de boas famílias, tenha disparado contra a medida tomada pelo governo a classificação de «pouca-vergonha!», com adivinhável ponto de exclamação e tudo. A suposta justificação para a agressão verbal é que, gastando menos do que podia, o governo gastou menos do que teria prometido.
O que lhes dói
O que é bem capaz de ser uma vergonha é que a senhora doutora Cristas, que parece ter acordado um dia com o sonho desvairado de vir a mandar na capital, tenha tentado manipular um pouco os cidadãos telespectadores com a utilização de uma linguagem talvez mais concordante com as formulações em uso nos mercados do Bolhão ou da Ribeira. Uma «pouca-vergonha» será decerto uma feia cousa, mas uma injusta acusação de desvergonha é uma «pouca-vergonha» que se agrava por porvir da boca de uma senhora com responsabilidades políticas (e portanto éticas) de topo, até professora universitária ainda com inerentes responsabilidades educativas e tudo.
Mas há mais e porventura mais graves aspectos: a doutora é líder de um partido que se reclama de democrata e de cristão, se é que alguém por lá ainda se lembra disso. Usar uma linguagem tendencialmente reles para o debate político não parece democrático nem cristão: não o seria ainda que a recriminação se justificasse.
Mas bem sabemos o que permanentemente dói a estas almas afinal pouco cristãs e não exageradamente democráticas: é que o actual governo, consequência do voto popular, esse sim, democrático, resista. Apesar dos diabos encomendados pelo ex-PM e afinal diabolicamente faltosos. De passagem, sublinhe-se que essas encomendas feitas com visível avidez e que teriam sido gravemente nocivas para o país no caso de serem confirmadas pela realidade, essas sim, foram evidentes casos de «pouca-vergonha» que feridas abertas por despeitos então recentes explicam mas não absolvem. E que o povo português não esquece.