Dez Dias que Abalaram o Mundo, de John Reed

Testemunhar e descrever um ímpar período histórico

Domingos Lobo

«Dez Dias que Aba­laram o Mundo» é um mo­nu­mento li­te­rário/​jor­na­lís­tico fun­da­mental

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Co­me­mora-se este ano o cen­te­nário da Re­vo­lução de Ou­tubro, a mais pro­fícua, ge­ne­rosa e justa re­vo­lução so­cial que a hu­ma­ni­dade já co­nheceu. Na­tural, por­tanto, que um Par­tido como o PCP, que se as­sume van­guarda e de­fensor com­ba­tivo e in­tran­si­gente de todos os tra­ba­lha­dores, ins­pi­rado pelas te­o­rias re­vo­lu­ci­o­ná­rias de Marx e Lé­nine, pro­cure co­me­morar, com o re­levo e dig­ni­dade que esse ímpar acon­te­ci­mento his­tó­rico, que mudou para sempre a di­a­léc­tica do pen­sa­mento e da re­a­li­dade e a prá­tica das re­la­ções entre ca­pital e tra­balho, entre ex­plo­rados e ex­plo­ra­dores, que al­terou a nossa visão do mundo e das so­ci­e­dades, am­pla­mente me­rece e jus­ti­fica.

A edição de Dez Dias que Aba­laram o Mundo, de John Reed, pelas Edi­ções Avante, um dos mo­nu­mentos li­te­rá­rios/​jor­na­lís­ticos dos mais raros e fun­da­men­tais, no modo como o autor tes­te­munha, des­creve e exalta os acon­te­ci­mentos vi­vidos em Pe­tro­grado nesses meses de brasa de 1917, de toda a his­tória da li­te­ra­tura. Este livro é, no con­texto das co­me­mo­ra­ções, pelo que sig­ni­fica en­quanto do­cu­mento his­tó­rico de­ter­mi­nante e im­pres­cin­dível, e como obra de arte li­te­rária, um acon­te­ci­mento cul­tural e po­lí­tico do mais sa­li­ente sig­ni­fi­cado e im­por­tância.

O rigor da tra­dução, os do­cu­mentos anexos, a pro­fusão e ra­ri­dade das fo­to­gra­fias das mar­cantes e fre­né­ticas ocor­rên­cias his­tó­ricas, es­pe­lhando a luta e o fu­turo a brotar das ruas de Pe­tro­grado, da Duma Mu­ni­cipal, dos con­frontos entre men­che­vi­ques e bol­che­vi­ques, entre o poder bur­guês e re­ac­ci­o­nário atre­lado a Ké­renski e o poder re­vo­lu­ci­o­nário dos so­vi­etes che­fi­ados por Kri­lenko, Trótski e Lé­nine, que a pena de John Reed, de forma ma­gis­tral e co­ra­josa, des­creve com ri­go­roso, as­ser­tivo e lú­cido em­penho, in­tro­du­zindo na prosa, com o fervor de quem sabe estar a viver e pre­sen­ciar mo­mentos únicos e trans­cen­dentes da His­tória da Hu­ma­ni­dade, em­pol­gantes e pre­mentes actos do com­bate po­lí­tico e ide­o­ló­gico, e tem o dever de os trans­mitir aos vin­douros. O modo atento, di­dác­tico como esta edição foi pre­pa­rada, a as­sunção de um do­cu­mento ver­da­dei­ra­mente his­tó­rico, cul­mi­nando com um no­tável Pos­fácio que per­corre e sin­te­tiza, à luz das ques­tões da ac­tu­a­li­dade his­tó­rica, o livro de Reed, me­recem lei­tura, ou re­lei­tura atenta para o que nele se diz e conta. Lei­tura que per­mita aos mais cép­ticos des­montar a pro­pa­ganda frau­du­lenta, a in­sídia que du­rante dé­cadas en­volveu e tentou sub­verter a ver­dade his­tó­rica do maior acon­te­ci­mento so­cial, po­lí­tico, cul­tural e hu­ma­nista do sé­culo XX, que foi a Re­vo­lução Russa de 1917.

In­te­li­gência aguda e es­pí­rito va­lente

John Reed nasceu em Por­tland a 20 de Ou­tubro de 1887, oriundo de uma fa­mília da média bur­guesia. Fre­quentou uma ele­gante es­cola par­ti­cular em Mor­ristow, Nova Jérsia, e fez os seus es­tudos aca­dé­micos na Uni­ver­si­dade de Har­vard, pela qual se li­cen­ciou em 1910. A Amé­rica vivia então uma efer­ves­cente época de con­fronto e de­bate ide­o­ló­gico e Reed, in­te­res­sado nos mo­vi­mentos so­ciais do seu tempo, co­meça a fre­quentar as ac­ti­vi­dades do Clube So­ci­a­lista.

Tra­balha com fre­e­lancer em vá­rios jor­nais, com co­la­bo­ração mais de­mo­rada no jornal pro­gres­sista The Masses. Dele afirmou o seu com­pa­nheiro de lutas Al­bert Rhys Wil­liams: Reed tinha uma in­te­li­gência des­perta e aguda, um tem­pe­ra­mento de lu­tador, um es­pí­rito in­tré­pido e va­lente.

São estas qua­li­dades que lhe per­mi­tiram es­crever a obra-prima do jor­na­lismo que é Dez Dias que Aba­laram o Mundo e ter o pri­vi­légio de par­ti­cipar e tes­te­mu­nhar essa vi­agem fas­ci­nante, vi­vendo a azá­fama, o de­sâ­nimo e o jú­bilo dos dias sô­fregos, os dias plenos que an­te­ce­deram a Re­vo­lução de Ou­tubro, sendo-lhe fa­cul­tado, graças à sua de­ter­mi­nação, co­ragem e mes­tria en­quanto re­pórter ar­guto e sen­sível, pe­ne­trar o nú­cleo e a ver­tigem dos acon­te­ci­mentos que trans­for­ma­riam um país rural, anal­fa­beto, de es­tru­tura feudal, o país pobre e sub-nu­trido, le­gado por Ni­colau II e Ké­renski, na Rússia dos So­vi­etes, pro­gres­sista, igua­li­tária e livre da ex­plo­ração do homem pelo homem. Um vasto país que saía, nesses dez dias de luta contra os ini­migos in­ternos e ex­ternos, da pré-his­tória da hu­ma­ni­dade, se­gundo Marx, para ini­ciar um novo es­tágio da es­pe­rança e da dig­ni­dade, um tempo exem­plar e único.

Eu vi o fu­turo a acon­tecer, afir­maria o jor­na­lista ame­ri­cano Lin­coln Stef­fens quando, em 1919 vi­sitou a pá­tria dos so­vi­etes.

Este im­pres­cin­dível livro das Edi­ções Avante! é acom­pa­nhado pelo CD que contém o épico Ou­tubro, de Ser­guei Ei­sens­tein, cujo guião en­cena, em parte, os acon­te­ci­mentos des­critos por John Reed. Livro e filme, cada qual a seu modo, narram e am­pliam o sig­ni­fi­cado pon­de­roso e his­tó­rico desses dias in­tensos e pe­renes – sinal, ba­lu­arte e es­pe­rança de todos os ex­plo­rados.

O nome de John Reed, es­creve N. K. Krúps­kaia num dos pre­fá­cios que acom­pa­nham esta edição, está in­dis­so­lu­vel­mente li­gado à Re­vo­lução Russa. A Rússia So­vié­tica tornou-se pró­xima e cara para ele. Foi atin­gido pelo tifo, e jaz hoje junto à base da Mu­ralha Ver­melha do Krémlin. Tendo des­crito tão bem a morte dos muitos már­tires da Re­vo­lução, John Reed me­rece esta honra.

 



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