O pecado mortal de Donald Trump

Correia da Fonseca

Foram duas pequeninas informações apenas passadas em rodapé do ecrã no decurso de telenoticiários, decerto porque se tratava de pormenores minúsculos e desinteressantes que não mereciam a chamada de atenção dos telespectadores. A primeira dizia que a CIA havia suspendido o apoio aos grupos armados que combatem Assad. A segunda, transmitida talvez cerca de vinte e quatro horas depois, informava-nos do mesmo facto, mas onde a anterior mencionava a CIA esta referia «os Estados Unidos». Diferença mínima, pois, como bem se vê, em ambos os casos conduzindo-nos ao fundamental: a implícita confirmação de que até há poucos dias os Estados Unidos apoiavam os grupos ditos rebeldes que, na tentativa de derrubarem o presidente Bashar-el-Assad e o seu governo internacionalmente reconhecido, transformaram a Síria no inferno de que diariamente a televisão nos tem dado mais que consternadoras, pavorosas notícias sem réstia de esperança. Salvo talvez uma outra informação que, ainda que igualmente prestada de modo discreto, conseguiu saltar do rodapé dos ecrãs para o corpo integral da notícia: segundo ela, do encontro entre Trump e Putin ocorrido em Hamburgo saíra um princípio de acordo sobre a Síria ou, pelo menos, a concordância fundamental em que seria preciso estabelecer esse acordo.

Até que se arrependa

Como se diria nos Estados Unidos e, a julgar pelas informações que nos são dadas pela televisão e seus complementos mediáticos, é nisto que dá a mania de Trump e da sua «entourage» de falar com os russos. A coisa começou antes mesmo da eleição presidencial que redundou na vitória de Trump, parece que sobretudo porque o seu filho, ou talvez o seu genro, andaram a falar com uma advogada russa, calcule-se! Depois disso, por várias vezes Donald exprimiu a opinião não apenas impopular mas até sacrílega de que os russos talvez não sejam integralmente demoníacos. Ora, para a boa gente norte-americana os russos são piores e mais assustadores que o diabo, foram comunistas e talvez ainda secretamente o sejam, pelo que é imperioso não lhes dar a mínima confiança e, se possível, aproveitar uma eventual oportunidade para lhes saltar em cima. Entretanto, para milhões de não-americanos espalhados pelo planeta, é certo que Donald Trump é malcriado, bruto, chauvinista e racista, o que é óbvio, mas enquanto fosse hostil aos russos, tudo bem, todo o mais lhe seria perdoado. Eis, porém, que ele parece querer dar-se bem com Putin e por essa via afastar o já crónico risco de uma guerra que, pelo menos enquanto não se tornasse nuclear, seria até uma boa oportunidade de negócios para a indústria armamentista e outros comércios. Quer isto dizer que Trump é um pecador e dos grandes. Por isso andam os «media» internacionais, todos muitíssimo democráticos e sobretudo independentes, a tratá-lo como ele merece: a hostilizá-lo, a denunciar os seus aliás muitos ridículos, a desvendar os podres que abundam no seu «staff». E assim será até que ele, arrependido, corte as boas relações com Putin e todos os russos. E, quanto possível, reinicie a saudosa Guerra Fria.




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