A outra vítima
Foram dias e dias em que os diversos canais portugueses de TV se fixaram prioritariamente na tragédia que, a partir de Pedrógão Grande, se abateu sobre uma vasta área do centro do País. Nada a objectar, é claro, quanto a essa escolhida prioridade que, para mais, não surgiu marcada por aspectos negativos que surgiram, quando não foram dominantes, em reportagens de incêndios ocorridos em anos anteriores: planos próximos de grandes braseiros, colhidos de tal modo que ocupariam totalmente os ecrãs dos nossos televisores e assim se tornariam um telespectáculo excitante; entrevistas pungentes. Não é que desta vez não tivessem sido transmitidas imagens de devastação e tragédia, entrevistas com quem perdera muito ou porventura tudo. Mas terá sido difícil reencontrar o registo de procurada espectacularidade que foi frequente, talvez maioritário, nas reportagens de outros anos, tanto e tal modo que chegou a ser formulada oficiosamente a hipótese de algumas delas serem estimulantes dos pendores pirómanos de alguns dos que, no segredo das noites altas, acenderiam fogos para poderem desfrutar a sinistra beleza do espectáculo por eles criado. Ainda assim, pudemos olhar imagens que davam testemunho do horror acontecido, mas sabendo-se das circunstâncias em que tudo decorreu é fácil imaginar o que poderia ter-nos sido fornecido por uma televisão sem escrúpulos e só preocupada em ganhar a corrida às audiências.
Uma discreta legenda
De qualquer modo, é claro que a vida, e inevitavelmente também a morte, continuaram o seu curso por outros lugares do mundo. E neste quadro global ocorreu um muito triste acontecimento que a televisão, toda ocupada com a desgraça de Pedrógão, quase não nos deu a conhecer: foi por uma breve legenda colocada desta vez não em rodapé mas no alto dos televisores que pudemos saber que «um militar português foi morto no Mali». Era, de certo modo, mais uma vítima a acrescentar às sessenta e duas que já haviam sido anunciadas. É de crer que a maioria dos cidadãos telespectadores nem sequer se lembrava de que havia portugueses, militares ou não, no distante Mali. Mais tarde, muito mais tarde e avulsamente, pelo menos a RTP explicou que o militar estava no Mali integrando «uma missão da NATO» e havia sido assassinado por terroristas. Significa isto que o soldado português que morreu não morreu em defesa da sua e nossa pátria, como será justificado que morram os soldados portugueses, mas em defesa de qualquer outra coisa que não sabemos ao certo o que é, que nem ele o saberia talvez. E a discrição com que a notícia nos foi dada suscitará em muitos algum sentimento de injustiça: parece indiscutível que lhe era devida outra atenção. Além do mais, isto de haver militares portugueses no Mali ou em qualquer outro lugar distante e perigoso sem que a generalidade dos seus compatriotas saibam dessa presença e desse risco é pelo menos desagradável. A essa ignorância generalizada acrescenta-se agora a extrema discrição da notícia da sua morte. E de tudo isto se desprende uma espécie de desconforto que talvez exija algo mais que o silêncio.