Quando Portugal Ardeu, de Miguel Carvalho

Domingos Lobo

O País ardeu sob a batuta incendiária dos operacionais da CIA

Image 22792

A história da Revolução Portuguesa, e das derivas regressivas da contra-revolução, teve o seu punhado de defensores indomáveis, homens e mulheres que resistiram e ousaram enfrentar o medo e esculpir sobre o lodo dos dias de brasa as marcas da Liberdade e do porvir; teve os indiferentes, os que passaram pelos ventos da História sem sentir o rumor dos dias levantados, sequer dos dias sórdidos; teve os traidores, os sevandijas que bajulavam a sombra dos poderosos caídos dos seus tronos de fumo e, cegos à sua própria condição, obedeceram ao amo até ao estágio supremo do crime e da ignomínia; o capital, com rosto e nome, cuja pátria era (é) a usura, a concupiscência, a vileza atávica.

Munidos de uma corte de servidores invertebrados e acolitados por uma rede de conspiradores profissionais, de organizações da inteligência imperial, erigidas à medida dos interesses de classe da agiotagem transnacional, e da ideologia feudal dominante, os arvorados donos disto tudo não hesitaram (não hesitam) em recorrer à mentira, à perseguição, à violência extrema, para tentarem perpetuar o domínio supremo do lucro e dos privilégios.

Nos dias quentes e no Outono de 1975, almejaram sufocar o mar de esperança que Abril nos trouxe e, em extremo delírio, impedir que a Revolução e os valores de justiça e dignidade a ela associados, esse retorno ao humano liberto de masmorras e palavras sonegadas, do meio século da fome, do medo, da exclusão e da ignorância – únicos modelos sociais que o capitalismo tem para oferecer – plenamente se cumprisse.

O Portugal serôdio, velho de séculos, cheio de empáfia e ódio, de mesquinhez e ranço caceteiro; o Portugal do latifúndio, das comendas, dos monopólios, das vergonhas e dos crimes coloniais; o Portugal do mando, beato e instalado sobre as ruínas de um país à míngua, o «mais atrasado e pobre da Europa»; o Portugal das 200 famílias, dos Mellos, dos Vinhas, dos Espírito Santo, dos Champalimaud, dos Boullosa, dos cónegos Melo, dos «pides» e legionários reciclados e dos bombistas a soldo, saiu à rua com o seu cortejo de archotes, de injúrias, de bombas artesanais e de sofisticado armamento, com dinheiro a rodos, para se vingar de Abril e do seu grito libertário.

Entre o golpe spinolista de 28 de Setembro e a desforra de 25 de Novembro de 1975, as datas simbólicas do estupor que foi a contra-revolução (e mais houve para além desse período nefasto), o País ardeu sob a batuta incendiária dos operacionais da CIA, do ELP, do MDLP, do Partido do Progresso, dos Ramiro Moreira, dos Alpoim Calvão, das homílias do obscurantismo, da instigação irracional do medo, do embuste larvar, recorrendo ao patrocínio de muitas e insuspeitas cumplicidades, de um vasto leque de agentes da intoxicação mediática que ainda hoje, como nestas páginas denunciou Agostinho Lopes, se passeiam pelas pantalhas como impolutos fazedores de opinião.

A direita ultramontana e revanchista não amainou intentos com o 25 de Novembro. Queria mais, tentava impor uma ditadura ainda mais feroz e reaccionária do que aquela que Abril havia vencido; uma ditadura que levasse ao regresso, com violência e sangue, ao fascismo sem a maçada das encenações democráticas. A violência ancorada numa direita que hoje se exibe virtuosa e civilizada, mas que não perdeu na pose e na retórica os tiques do seu trauliteiro passado. Há, no cardápio dos crimes praticados pela contra-revolução, muitas mortes após esse sinistro espaço temporário: o padre Max, Rosinda Teixeira, dois diplomatas da embaixada de Cuba, e tantos outros.

No livro Quando Portugal Ardeu, de Miguel Carvalho, tudo isto e muito mais se diz e conta com minúcia e detalhe, numa recolha de dados até hoje inédita, feita de testemunhos e documentação, de modelar investigação jornalística que desce aos meandros do terror e denuncia as bases, as origens, as intenções e os apoios da rede bombista. Um livro, diz-nos o autor, que resgata memórias de vítimas das primeiras horas, meses e anos de revolução, a maioria delas ignoradas ou reduzidas a uma nota fúnebre num pé de página da História.

Esses «exércitos» da contra-revolução, foram responsáveis, entre Maio de 1975 e Abril de 1977, por mais de 566 acções perpetradas em todo País. Com o PCP à cabeça, a par de militares e sindicatos, foram os alvos preferenciais de quase 80 por cento das bombas, assaltos, incêndios, espancamentos, apedrejamentos e atentados a tiro. Fizeram mais de 10 vítimas. Queriam queimar Abril, mas o Povo de Abril resistiu. Resistirá.

Quando Portugal Ardeu, de Miguel Carvalho. Oficina do Livro/2017




Mais artigos de: Argumentos

A capa

Há, naturalmente, muitas formas de a televisão executar o seu trabalho informativo, e há poucos dias ainda um dos canais portugueses de TV, pouco importa qual, utilizou uma pouco usual maneira de o fazer: transmitindo a imagem da mais recente capa da revista norte-americana «Time», um...

Em Setúbal o Museu está na rua

Quando uso uma palavra– diz Humptie Dumptie em tom de desprezo –ela significa exactamente o que quero dizer, nem mais, nem menos.A questão – diz Alice – é a de saber o que querem significartanto as coisas como as palavras»Alice no País das...