Em Setúbal o Museu está na rua
O que traça a fronteira entre nós e o artista é a maneira de ver
Quando uso uma palavra
– diz Humptie Dumptie em tom de desprezo –
ela significa exactamente o que quero dizer, nem mais, nem menos.
A questão – diz Alice – é a de saber o que querem significar
tanto as coisas como as palavras»
Alice no País das Maravilhas – Lewis Carroll
O Museu está na Rua, no Bairro da Bela Vista em Setúbal, encontrou em João Limpinho o seu escultor. Não foi um acaso. O conhecimento da sua obra dava sobejas garantias a quem fez a encomenda e seleccionou o artista por concurso público, a Câmara Municipal de Setúbal. Limpinho e Duchamp têm um traço de união, os «ready-made» /objectos encontrados. Para Duchamp é um fim para Limpinho um princípio. Têm a atitude idêntica de procurarem retirar a aura à arte, de questionar a linearidade das leituras dos objectos que povoam o mundo. Para O Museu está na Rua, o escultor vasculhou as sucatas de várias empresas do Parque Industrial de Setúbal para encontrar os objectos que iria transformar em esculturas. Num projecto com aquela dimensão, com objectivos estéticos, sociais e políticos bem definidos, só a sua alma de artista enxertada numa rara qualidade humana saberia fabricar as obras de arte que valorizariam aquele espaço. Fê-lo sem a menor concessão de gosto mas sem pretensiosismos elitistas, sempre em diálogo com as comunidades com a finalidade das esculturas serem entendidas e adoptadas por quem iria diariamente conviver e aprender a ver com elas.
João Limpinho, com uma mão no ferro e outra dentro da cabeça, tinha o olhar límpido e perfurante que o fazia ver o que ninguém consegue ver aliado ao saber oficinal de tornar físicas as suas visões. Esse fazer de João Limpinho é necessariamente precedido por várias construções mentais que o escultor, enquanto os objectos estão, por assim dizer, «vivos», vai projectando sobre eles, condenando-os em «vida» a uma ressurreição anunciada. Ressurreição que terminará numa reincarnação de cuja chave só ele é detentor.
O que traça a fronteira entre nós e o artista é exactamente essa maneira de ver: enquanto nós olhamos para um objecto e o catalogamos por um quadro de referências generalizadamente aceite, o escultor começa imediatamente a ver o que nós não conseguimos ver. Na realidade está a vampirizar a identidade dos objectos inventando-lhes diversos futuros possíveis que se irão conhecer/reconhecer mais tarde. Em O Museu está na Rua, são treze esculturas desde as que usam elementos de grande porte, como as partes dos moldes de aço dos trípodes, aquelas massas de cimento que protegem os molhes portuários, que se unem com a simplicidade de recortes infantis em papel na escultura Cinco Continentes, uma homenagem à multiculturidade do Bairro. As formas jogam umas com as outras subtilmente destruindo a sua bruteza original para dar lugar a um delicadíssimo bailado que a luz, o andar diário do sol abraça para acordar toda a poesia que o escultor escreveu em ferro. Outras tem como ponto de partida objectos mais simples como um plano horizontal de ferro, uma placa de cofragem sem estórias que se reinventa num Estendal de bikinis que são extraídos dos corpos deixando as formas vazadas para se pendurarem de uma corda de aço. A referência aos estendais que são uma quase imagem de marca do bairro, facilmente entendida contribuindo para a relação empática dos habitantes as esculturas que agora pontuam os seus itinerários. Muitas das esculturas descobrindo-se as suas origens provocam sorrisos, risos. Esses sorrisos, esses risos serão sempre inteligentes.
São dois exemplos ao acaso. Mas olhe-se para todas e cada uma das esculturas de O Museu está na Rua para se ficar a saber que a arte, a poética espreita-nos a cada esquina da vida. Não o sabíamos, aprendemos, continuamos a aprender essa verdade com João Limpinho e está à nossa espera nas esculturas do Bairro da Bela Vista, em Setúbal.