Guernica, paixão pela vida

Manuel Augusto Araújo

Guernica é a evidência da portentosa imaginação criadora de Picasso

A República de Espanha tinha encomendado obras a Picasso e artistas seus apoiantes, entre outros Juan Miró, para serem integradas no pavilhão de Espanha na Exposição Universal de Paris. A Guerra Civil de Espanha continuava brutal com os fascistas, apoiados pela Alemanha de Hitler e a Itália de Mussolini, a avançarem contra os revolucionários espanhóis desamparados pelas democracias ocidentais com traições por omissão ou negação e a grande solidariedade dos voluntários das Brigadas Internacionais. A encomenda foi feita em Janeiro. Picasso, procurando ideias para o mural com a dimensão de 3,50 x 7,80 metros, fez duas gravuras, Sonho e Mentira de Franco em que escarnecia do ditador fascista. Duas gravuras com nove quadrados, como uma banda desenhada.

Em Maio, Hitler, numa demonstração de força e de aviso ao mundo, ordenou o bombardeamento de Guernica, o primeiro ataque desse género que viria a ser imagem de marca do exército nazi tal como foram os campos de concentração, uma forma industrial e moderna de extermínio em linha com os que tinham sido perpetrados pelas potências coloniais em vários continentes.

O massacre de Guernica emocionou o mundo. Para Picasso foi a espoleta que disparou a sua prodigiosa imaginação. Imediatamente desenhou vários esquiços, uns de composição, outros de personagens: a mulher chorando, a mulher com o filho morto, o cavalo, que iriam figurar na obra final, alguns já integravam as gravuras Sonho e Mentira de Franco. Logo nesses primeiros desenhos de composição uma figura surge com grande destaque: a mulher que sai da janela com um longo e poderoso braço que segura um candeeiro, simbolizando a luz da racionalidade no meio do apocalipse.

São muitos os estudos que Picasso fez enquanto pintava o mural cuja evolução está documentada em seis fotografias de Dora Maar.

Guernica é com a Gioconda de Da Vinci, As Meninas de Velasquez, a Ronda da Noite de Rembrandt, uma das pinturas mais conhecidas e reproduzidas. Nenhuma reprodução consegue transmitir o efeito que o original provoca. A dimensão é um óbice reduzindo o impacto das linhas de força do quadro, das personagens, os brancos cegantes, as gradações dos cinzentos e dos negros, a espessura das linhas. Não se perde o valor simbólico, amortece o assombro que o mural provoca. Picasso altera radicalmente o modo de contemplar uma obra de arte em que o espectador vê, analisa e admira uma obra enquanto do passado, sem se situar ou mesmo considerando desnecessário situar-se na história. Mais do que contemplar, Picasso obriga a que o espectador participe racionalmente, sem perder a emoção e não permite que a história se apague.

Guernica é a evidência da portentosa imaginação criadora de Picasso. É um exercício extraordinário alinhar todos os estudos que o pintor fez e ver como se cruzam, enlaçam, contaminam e ressurgem no mural quando Picasso o deu por terminado. Como em Guernica com tantos elementos heterogéneos explorados pelo artista, alguns inesperados, alcança uma unidade soberba e deslumbrante. Uma obra em que Picasso associa a sua transbordante imaginação criadora a uma paixão avassaladora pela humanidade e pela vida.

Todas as descrições e interpretações são sempre insuficientes perante aquela obra portentosa. Guernica é um manifesto intemporal contra os horrores e a irracionalidade das guerras, seja a Guerra dos Cem Anos, a II Guerra Mundial, a guerra do Vietname, as guerras de Portugal nas colónias, as que decorrem no Médio-Oriente. Todas as guerras destroçam a humanidade. Guernica é obra impar, inigualável, património de toda a humanidade.




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