Democracia e Socialismo
A questão da correlação entre a luta pela democracia e a luta pelo socialismo percorre toda a história do movimento operário e comunista internacional. Nos nossos dias adquiriu particular importância, tornou-se tema incontornável de debate entre forças de esquerda ou que de «esquerda» se reclamam, e mesmo motivo de sérias divergências no movimento comunista e revolucionário internacional.
O PCP, porque está seguro da sua independência de classe e confia nas massas, não receia convergências e acordos desde que, como no caso da posição conjunta com o PS, tal seja do interesse dos trabalhadores, do povo e do País
Entre as razões de fundo para que esta questão tenha adquirido renovada actualidade encontra-se a contradição entre, por um lado, o aprofundamento da crise estrutural do capitalismo e a exigência de profundas transformações revolucionárias orientadas para o socialismo, e, por outro lado, insuficiências ao nível das forças revolucionárias e atraso na organização e na consciência e disposição política das massas. Isto num quadro em que o capitalismo responde à crise do sistema com a intensificação da sua política de exploração, opressão e guerra e ameaça o mundo com uma catástrofe de incalculáveis proporções.
É aqui que reside o caldo de cultura de duas tendências extremas e opostas mas que convergem em idêntico resultado:
– a claudicação perante a dureza da luta e a adaptação ao estado de coisas existente, com o abandono de uma perspectiva revolucionária e a opção por uma posição reformista de colaboração de classes (frequentemente justificada com a tese de que afinal «o socialismo é o desenvolvimento da democracia») em que se verifica a social-democratização de partidos comunistas ao mesmo tempo que a social-democracia, rendida ao neoliberalismo, se assume como pilar do imperialismo;
– a impaciência e o radicalismo esquerdista que nega a existência de etapas e fases intermédias na luta revolucionária e coloca o socialismo como tarefa imediata e universal, independentemente das condições concretas de cada país, chegando ao ponto de considerar a luta por alternativas de progresso social e de soberania como de mera «gestão do sistema» e mesmo de travão ao desenvolvimento do processo de transformação social.
Vivemos a época da passagem do capitalismo ao socialismo inaugurada pela Revolução de Outubro e como tal definida por Lénine. Mas isso não significa que por toda a parte estejam reunidas as condições para a revolução socialista. A derrota por Lénine do revisionismo bernesteiniano – que apregoando que «o movimento é tudo e o objectivo final não é nada» esvaziava Marx e o marxismo da sua essência revolucionária (o poder dos trabalhadores1) – nunca foi sinónimo de «socialismo já» nem da negação ou subestimação da existência de etapas e fases intermédias no caminho da conquista do poder pela classe operária. E menos ainda de incompreensão da importância da luta pela democracia na estratégia revolucionária do partido do proletariado e da correlação da luta pela democracia e da luta pelo socialismo.
É assim particularmente oportuno e instrutivo revisitar Lénine e apreender como ele combatia simultaneamente nas duas frentes contra o oportunismo de direita, revisionista e reformista, que adiava indefinidamente a revolução e sabotava a acção revolucionária, e contra o oportunismo de «esquerda» impaciente e voluntarista que, isolando a vanguarda da classe e a classe das massas, queimava na fraseologia sectária e dogmática qualquer real possibilidade de avanço transformador e revolucionário: « A revolução socialista não é um acto único, uma batalha única numa única frente, é toda uma época de conflitos de classes agudos, uma longa sucessão de batalhas em todas as frentes, quer dizer em todas as questões de economia e de política, batalhas que só podem acabar pela expropriação da burguesia. Seria um erro capital acreditar que a luta pela democracia é susceptível de desviar o proletariado da revolução socialista, ou de eclipsar esta, de a esbater, etc. Pelo contrário, do mesmo modo que é impossível conceber um socialismo vitorioso que não realizasse a democracia integral, do mesmo modo o proletariado não se pode preparar para a vitória sobre a burguesia se não trava uma luta geral, sistemática e revolucionária pela democracia»2.
A questão da democracia
O PCP tem claramente definido no seu Programa aprovado no XIX Congresso «Uma democracia avançada – os valores de Abril no futuro de Portugal», o seu conceito de democracia, um conceito que radica na sua visão marxista-leninista do mundo e na sua própria experiência revolucionária. Um conceito que não é abstração fora da realidade social, mas que, como não podia deixar de ser, tem um conteúdo de classe. Um conceito que não desdenha – e como poderia desdenhá-lo um partido que se criou e enraizou nas massas sob uma ditadura fascista e que teve na luta pelas liberdades democráticas fundamentais o objectivo central e imediato da sua acção revolucionária? – a democracia formal e valoriza o valor próprio da democracia política. Mas que considera que a democracia para o ser verdadeiramente como o quer a própria raiz etimológica do conceito – «poder do povo» – tem de ser não apenas política mas também económica, social e cultural, num quadro em que a independência e a soberania nacional estão asseguradas.
Na sua acepção vulgar, o conceito de democracia é um conceito muito pouco rigoroso que cobre situações de organização do poder do Estado muito diversas quanto ao exercício de liberdades e direitos fundamentais em geral reduzidas à sua dimensão cívica e política. É um conceito que ilude a realidade pois apenas leva em consideração a forma política de governo e não só passa ao lado do seu concreto conteúdo de classe como assimila «democracia» e democracia burguesa, expressão super-estrutural encobridora da dominação da burguesia no quadro das relações de produção capitalistas assentes na apropriação privada dos meios de produção.
O Estado tem sempre uma natureza de classe. É absurdo falar de um Estado «neutro», ao serviço do «bem comum», acima das classes sociais e das contradições de classe como pretende a burguesia. Ao falar de democracia é necessário perguntar: democracia para quem, para que classes? No interesse de quem, de que classes? Uma democracia integral só pode ser uma democracia socialista, assente no poder dos trabalhadores e na propriedade social dos meios de produção, orientada pelos interesses da esmagadora maioria da sociedade.
Mas com todos os seus limites e ambiguidades o conceito de democracia aplicado a uma sociedade capitalista, onde o exercício do poder da classe dominante está limitado pela correlação de forças no plano social e político, representa um avanço libertador e uma conquista de heróicas lutas das classes trabalhadoras que nenhum revolucionário tem o direito de subestimar.
É uma realidade histórica que o poder da burguesia se pode exercer sob formas diversas, ditatoriais ou democráticas. O fascismo, ditadura terrorista do grande capital monopolista, é a forma mais violenta de exercício do poder capitalista. E o exercício democrático pode variar muitíssimo, em função do desenvolvimento da luta de classes e da sua tradução no plano político, eleitoral e institucional.
Aliás é também verdade que o poder conquistado revolucionariamente pelos trabalhadores tem conhecido formas diferenciadas entre diferentes países e ao longo do tempo dentro de um mesmo país. A realidade é que a Revolução de Outubro, com traços gerais e universais embora, não é a mesma de outras revoluções socialistas. As realidades do Vietname, de Cuba, da República Popular Democrática da Coreia e da República Popular da China apresentam entre si diferenças substanciais em relação ao partido, ao poder político, à organização económica e outros aspectos. É uma evidência, para dar apenas um exemplo, que entre a China da revolução vitoriosa em 1949, a da Revolução Cultural maoista ou a da actualidade as diferenças são grandes.
Isto quer dizer (o que a cegueira dogmática e sectária não permite compreender) que com uma mesma natureza de classe e tratando-se de uma mesma formação económica e social, as formas de poder podem ser variadas, o que obviamente não é indiferente para os trabalhadores, para as suas aspirações a uma vida feliz e – particularmente importante para o tema que nos ocupa – para a sua luta pela transformação revolucionária da sociedade, pelos seus objectivos estratégicos do socialismo e do comunismo.
Lénine sublinhou a necessidade de distinguir entre a forma política de governo e a essência de um regime económico-social, e os comunistas portugueses sabem bem, por experiência própria, que não é indiferente desenvolver a luta nas condições de uma ditadura fascista (48 anos), numa democracia a caminho do socialismo (nos anos que se seguiram à Revolução de Abril no contexto de transformações democráticas que tiveram consagração constitucional), durante a ofensiva contra-revolucionária conduzida a partir dos órgãos de poder ou no quadro da solução política actual.
Como afirmou Álvaro Cunhal, «nada tem a ver com o marxismo-leninismo a opinião anarquizante segundo a qual é indiferente à classe operária que o poder da burguesia se exerça num regime parlamentar ou numa ditadura fascista, uma vez que num caso e noutro se trata do capitalismo (…) Enquanto subsistir o capitalismo, o proletariado está interessado em lutar para que a ditadura burguesa se exerça através de formas o mais democráticas possíveis, pois estas não só são as que menos sofrimentos lhe acarretam, como são aquelas que melhor lhe permitem defender os seus direitos, forjar a sua unidade, reforçar as suas organizações, limitar e enfraquecer o poder dos monopólios, ganhar as massas para a causa da revolução socialista. Nesse sentido se afirma que a luta pela democracia é parte integrante da luta pelo socialismo» (Álvaro Cunhal, «A questão do Estado, questão central de cada revolução»3.
A questão das etapas
A luta revolucionária pelo socialismo comporta etapas e fases diversas em cada país e de país para país. Etapas que, ainda que se situem num marco em que predominam as relações de produção capitalistas, em que a ruptura revolucionária que muda o poder para as mãos da classe operária e seus aliados ainda se não deu, tem características próprias com um sistema de poder, certamente transitório, mas que reflecte os interesses de determinadas classes sociais e fracções da burguesia e a correlação de forças na sociedade.
No caso concreto da democracia avançada que propõe ao povo português o PCP parte da realidade da luta de classes em Portugal em que a Revolução de Abril é um marco decisivo com os seus valores e experiências e os sulcos profundos que lavrou na sociedade portuguesa. É uma democracia simultaneamente política, económica, social e cultural, num quadro de soberania nacional. É uma democracia de conteúdo popular e com uma natureza de classe anti-monopolista e anti-imperialista. É uma democracia que se distingue fundamentalmente das democracias burguesas dominadas pelo capital monopolista que – cada vez mais diminuídas e amputadas, aliás – existem por essa Europa fora. É uma democracia em que se colocam tarefas e objectivos que são já tarefas e objectivos de uma sociedade socialista: entre a etapa da democracia avançada e a etapa socialista da revolução portuguesa, não só não há uma «muralha da China» como são etapas interligadas. Esta a realidade com que devem ser confrontados aqueles que, por ignorância ou má fé, estabelecem absurdos paralelismos com situações de outros partidos, chegando ao ponto de acusar o PCP de «reformismo» por não colocar o socialismo como objectivo imediato da sua acção ou admitir convergências e alianças, mais ou menos transitórias, no plano social e político.
O conteúdo da democracia contido no Programa do PCP adquire pois um carácter muito «avançado», o que não significa que seja o resultado puro e simples de um mecânico e paulatino desenvolvimento do regime democrático actual. Não, o aprofundamento da democracia nas suas múltiplas dimensões será o resultado da luta de classes, será conquista e ruptura, será alteração não apenas de quantidade mas de qualidade, um processo de natureza revolucionária, cuja forma, mais ou menos pacífica, dependerá essencialmente da resistência do grande capital monopolista e cujos contornos serão modelados pela intervenção criadora das próprias massas.
A ligação dialéctica da luta pela democracia e da luta pelo socialismo é uma realidade bem presente em todas as fases e etapas da revolução portuguesa. Isso aconteceu durante a longa noite fascista quando a luta pela liberdade e pela instauração de um regime democrático constituíam o objectivo central da luta do povo português. Isso aconteceu com a revolução antifascista de 1974 que nas suas linhas fundamentais confirmou o Programa do Partido para a Revolução Democrática e Nacional. Isso é hoje particularmente evidente com a democracia avançada do actual Programa que para alcançar os seus objectivos fundamentais tem de realizar tarefas que são já as de uma revolução socialista. O que pode ser incompreensível para quem tenha do processo histórico uma visão mecânica e esquemática mas que nada tem de surpreendente para o PCP: na época da passagem do capitalismo ao socialismo, uma época em que toda e qualquer revolução – democrática, nacional-libertadora ou outra – para poder triunfar nos seus próprios objectivos tem necessariamente de adquirir um carácter anti-imperialista, anti-capitalista e colocar-se objectivamente na perspectiva do socialismo.
O imediato e a perspectiva
O processo de transformação revolucionária da sociedade não é linear como a Avenida Nevsky (para utilizar uma célebre afirmação de Lénine) mas irregular e acidentado, feito de avanços e recuos, de períodos exaltantes de afluxo e avanço revolucionário e de dramático refluxo, de vitórias e derrotas. Os comunistas têm de estar preparados para as diferentes situações, saber recuar e avançar e definir em função dos objectivos fundamentais a atingir, as formas de luta mais adequadas e as correspondentes alianças sociais e políticas. Não foram as mesmas as alianças, convergências e compromissos sob o fascismo ou no tempo da Revolução de Abril. Não são as mesmas aquelas que uma alternativa patriótica e de esquerda exige e as de uma democracia avançada apontada ao socialismo. Para o partido da classe operária e de todos os trabalhadores o seu dever é o de construir alianças, por mais limitadas e contingentes que sejam, que façam avançar a sua luta. Que haja quem não compreenda esta necessidade não surpreende, mas é absurdo e ridículo pretender justificar tal incompreensão no plano ideológico com uma suposta «pureza» marxista-leninista, quando foi precisamente Lénine que zurziu do modo mais contundente o esquerdismo sectário, a que chamou «doença infantil do comunismo».
O PCP, porque está seguro da sua independência de classe e confia nas massas, não receia convergências e acordos desde que, como no caso da posição conjunta com o PS, tal seja do interesse dos trabalhadores, do povo e do País. O PCP conhece experiências positivas e negativas na história do movimento comunista em matéria de política de alianças e sabe que elas só podem favorecer o desenvolvimento da luta quando salvaguardam a completa independência política, ideológica e organizativa do partido comunista. E quando, intervindo no imediato não se perde de vista a perspectiva e se não confunde táctica e estratégia.
Sim, na etapa actual da revolução portuguesa, o PCP luta por transformações progressistas profundas sem colocar como tarefa imediata a luta pelo socialismo, o que nada tem de ilusão reformista. Porque a questão nunca foi a de procurar mudanças no quadro de um sistema capitalista. Esse é o sentido imediato da resistência e da luta quotidiana dos trabalhadores que, claro, o verbalismo menospreza. A questão é procurá-las nos limites do capitalismo sem uma perspectiva e uma linha de intervenção revolucionária. Se se confunde governo com poder, se se cai numa linha eleitoralista e não se tem em conta que as massas – a sua organização e mobilização – são o factor determinante do processo de transformação social, se se ignora que sem a transformação da base económica e social não é possível consolidar mudanças positivas no plano político e, sobretudo, se se perde de vista que o Estado é a questão central de cada revolução, resvala-se inexoravelmente para a adaptação ao sistema, a claudicação e a traição.
Para terminar reproduz-se um esclarecedor estrato da intervenção do camarada Álvaro Cunhal na abertura do XIV Congresso do PCP a propósito das alterações então introduzidas no Programa do Partido «Uma democracia avançada no limiar do século XXI» que havia sido aprovado no XII Congresso em 1998: «Partindo da reflexão e experiências próprias e das experiências internacionais positivas e negativas o Programa aponta o projecto de construção ulterior de uma sociedade socialista que incorpore e desenvolva elementos constitutivos fundamentais da democracia avançada […] Esta ligação entre a democracia avançada que é proposta e a sociedade socialista que apontamos no horizonte está radicada na nossa intervenção constante na sociedade. O ideal comunista é para nós não só um projecto para o futuro, mas um ideal cuja concretização se prepara e desenvolve numa atitude de reflexão, de crítica, de intervenção, de luta incessante e convicta para transformar o presente»4.
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1 Do ponto de vista marxista-leninista o Estado tem uma natureza de classe. A expressão «ditadura do proletariado» significa o poder dos trabalhadores, que é a democracia para a imensa maioria do povo, ao passo que sob o capitalismo vigora a «ditadura da burguesia», o poder de uma minoria sobre a maioria da sociedade.
2 Lénine, Oeuvres, Editions Sociales-Editions en langues étrangères, Paris-Moscou, 1960, t. 22, p. 156.
3 Álvaro Cunhal, «A questão do Estado, questão central de cada revolução», in Obras Escolhidas, Editorial «Avante!», Lisboa, tomo IV, 2013, p.223.
4 Álvaro Cunhal, Fracasso e Derrota do Governo de Direita do PSD/Cavaco Silva, Discursos Políticos 25, Edições «Avante!», Lisboa, 2016, p. 1288.