Democracia e Socialismo

Albano Nunes

A questão da cor­re­lação entre a luta pela de­mo­cracia e a luta pelo so­ci­a­lismo per­corre toda a his­tória do mo­vi­mento ope­rário e co­mu­nista in­ter­na­ci­onal. Nos nossos dias ad­quiriu par­ti­cular im­por­tância, tornou-se tema in­con­tor­nável de de­bate entre forças de es­querda ou que de «es­querda» se re­clamam, e mesmo mo­tivo de sé­rias di­ver­gên­cias no mo­vi­mento co­mu­nista e re­vo­lu­ci­o­nário in­ter­na­ci­onal.

O PCP, porque está se­guro da sua in­de­pen­dência de classe e confia nas massas, não re­ceia con­ver­gên­cias e acordos desde que, como no caso da po­sição con­junta com o PS, tal seja do in­te­resse dos tra­ba­lha­dores, do povo e do País

Entre as ra­zões de fundo para que esta questão tenha ad­qui­rido re­no­vada ac­tu­a­li­dade en­contra-se a con­tra­dição entre, por um lado, o apro­fun­da­mento da crise es­tru­tural do ca­pi­ta­lismo e a exi­gência de pro­fundas trans­for­ma­ções re­vo­lu­ci­o­ná­rias ori­en­tadas para o so­ci­a­lismo, e, por outro lado, in­su­fi­ci­ên­cias ao nível das forças re­vo­lu­ci­o­ná­rias e atraso na or­ga­ni­zação e na cons­ci­ência e dis­po­sição po­lí­tica das massas. Isto num quadro em que o ca­pi­ta­lismo res­ponde à crise do sis­tema com a in­ten­si­fi­cação da sua po­lí­tica de ex­plo­ração, opressão e guerra e ameaça o mundo com uma ca­tás­trofe de in­cal­cu­lá­veis pro­por­ções.

É aqui que re­side o caldo de cul­tura de duas ten­dên­cias ex­tremas e opostas mas que con­vergem em idên­tico re­sul­tado:

– a clau­di­cação pe­rante a du­reza da luta e a adap­tação ao es­tado de coisas exis­tente, com o aban­dono de uma pers­pec­tiva re­vo­lu­ci­o­nária e a opção por uma po­sição re­for­mista de co­la­bo­ração de classes (fre­quen­te­mente jus­ti­fi­cada com a tese de que afinal «o so­ci­a­lismo é o de­sen­vol­vi­mento da de­mo­cracia») em que se ve­ri­fica a so­cial-de­mo­cra­ti­zação de par­tidos co­mu­nistas ao mesmo tempo que a so­cial-de­mo­cracia, ren­dida ao ne­o­li­be­ra­lismo, se as­sume como pilar do im­pe­ri­a­lismo;

– a im­pa­ci­ência e o ra­di­ca­lismo es­quer­dista que nega a exis­tência de etapas e fases in­ter­mé­dias na luta re­vo­lu­ci­o­nária e co­loca o so­ci­a­lismo como ta­refa ime­diata e uni­versal, in­de­pen­den­te­mente das con­di­ções con­cretas de cada país, che­gando ao ponto de con­si­derar a luta por al­ter­na­tivas de pro­gresso so­cial e de so­be­rania como de mera «gestão do sis­tema» e mesmo de travão ao de­sen­vol­vi­mento do pro­cesso de trans­for­mação so­cial.

Vi­vemos a época da pas­sagem do ca­pi­ta­lismo ao so­ci­a­lismo inau­gu­rada pela Re­vo­lução de Ou­tubro e como tal de­fi­nida por Lé­nine. Mas isso não sig­ni­fica que por toda a parte es­tejam reu­nidas as con­di­ções para a re­vo­lução so­ci­a­lista. A der­rota por Lé­nine do re­vi­si­o­nismo ber­nes­tei­niano – que apre­go­ando que «o mo­vi­mento é tudo e o ob­jec­tivo final não é nada» es­va­ziava Marx e o mar­xismo da sua es­sência re­vo­lu­ci­o­nária (o poder dos tra­ba­lha­dores1) – nunca foi si­nó­nimo de «so­ci­a­lismo já» nem da ne­gação ou su­bes­ti­mação da exis­tência de etapas e fases in­ter­mé­dias no ca­minho da con­quista do poder pela classe ope­rária. E menos ainda de in­com­pre­ensão da im­por­tância da luta pela de­mo­cracia na es­tra­tégia re­vo­lu­ci­o­nária do par­tido do pro­le­ta­riado e da cor­re­lação da luta pela de­mo­cracia e da luta pelo so­ci­a­lismo.

É assim par­ti­cu­lar­mente opor­tuno e ins­tru­tivo re­vi­sitar Lé­nine e apre­ender como ele com­batia si­mul­ta­ne­a­mente nas duas frentes contra o opor­tu­nismo de di­reita, re­vi­si­o­nista e re­for­mista, que adiava in­de­fi­ni­da­mente a re­vo­lução e sa­bo­tava a acção re­vo­lu­ci­o­nária, e contra o opor­tu­nismo de «es­querda» im­pa­ci­ente e vo­lun­ta­rista que, iso­lando a van­guarda da classe e a classe das massas, quei­mava na fra­se­o­logia sec­tária e dog­má­tica qual­quer real pos­si­bi­li­dade de avanço trans­for­mador e re­vo­lu­ci­o­nário: « A re­vo­lução so­ci­a­lista não é um acto único, uma ba­talha única numa única frente, é toda uma época de con­flitos de classes agudos, uma longa su­cessão de ba­ta­lhas em todas as frentes, quer dizer em todas as ques­tões de eco­nomia e de po­lí­tica, ba­ta­lhas que só podem acabar pela ex­pro­pri­ação da bur­guesia. Seria um erro ca­pital acre­ditar que a luta pela de­mo­cracia é sus­cep­tível de des­viar o pro­le­ta­riado da re­vo­lução so­ci­a­lista, ou de eclipsar esta, de a es­bater, etc. Pelo con­trário, do mesmo modo que é im­pos­sível con­ceber um so­ci­a­lismo vi­to­rioso que não re­a­li­zasse a de­mo­cracia in­te­gral, do mesmo modo o pro­le­ta­riado não se pode pre­parar para a vi­tória sobre a bur­guesia se não trava uma luta geral, sis­te­má­tica e re­vo­lu­ci­o­nária pela de­mo­cracia»2.

A questão da de­mo­cracia

O PCP tem cla­ra­mente de­fi­nido no seu Pro­grama apro­vado no XIX Con­gresso «Uma de­mo­cracia avan­çada – os va­lores de Abril no fu­turo de Por­tugal», o seu con­ceito de de­mo­cracia, um con­ceito que ra­dica na sua visão mar­xista-le­ni­nista do mundo e na sua pró­pria ex­pe­ri­ência re­vo­lu­ci­o­nária. Um con­ceito que não é abs­tração fora da re­a­li­dade so­cial, mas que, como não podia deixar de ser, tem um con­teúdo de classe. Um con­ceito que não des­denha – e como po­deria des­denhá-lo um par­tido que se criou e en­raizou nas massas sob uma di­ta­dura fas­cista e que teve na luta pelas li­ber­dades de­mo­crá­ticas fun­da­men­tais o ob­jec­tivo cen­tral e ime­diato da sua acção re­vo­lu­ci­o­nária? – a de­mo­cracia formal e va­lo­riza o valor pró­prio da de­mo­cracia po­lí­tica. Mas que con­si­dera que a de­mo­cracia para o ser ver­da­dei­ra­mente como o quer a pró­pria raiz eti­mo­ló­gica do con­ceito – «poder do povo» – tem de ser não apenas po­lí­tica mas também eco­nó­mica, so­cial e cul­tural, num quadro em que a in­de­pen­dência e a so­be­rania na­ci­onal estão as­se­gu­radas.

Na sua acepção vulgar, o con­ceito de de­mo­cracia é um con­ceito muito pouco ri­go­roso que cobre si­tu­a­ções de or­ga­ni­zação do poder do Es­tado muito di­versas quanto ao exer­cício de li­ber­dades e di­reitos fun­da­men­tais em geral re­du­zidas à sua di­mensão cí­vica e po­lí­tica. É um con­ceito que ilude a re­a­li­dade pois apenas leva em con­si­de­ração a forma po­lí­tica de go­verno e não só passa ao lado do seu con­creto con­teúdo de classe como as­si­mila «de­mo­cracia» e de­mo­cracia bur­guesa, ex­pressão super-es­tru­tural en­co­bri­dora da do­mi­nação da bur­guesia no quadro das re­la­ções de pro­dução ca­pi­ta­listas as­sentes na apro­pri­ação pri­vada dos meios de pro­dução.

O Es­tado tem sempre uma na­tu­reza de classe. É ab­surdo falar de um Es­tado «neutro», ao ser­viço do «bem comum», acima das classes so­ciais e das con­tra­di­ções de classe como pre­tende a bur­guesia. Ao falar de de­mo­cracia é ne­ces­sário per­guntar: de­mo­cracia para quem, para que classes? No in­te­resse de quem, de que classes? Uma de­mo­cracia in­te­gral só pode ser uma de­mo­cracia so­ci­a­lista, as­sente no poder dos tra­ba­lha­dores e na pro­pri­e­dade so­cial dos meios de pro­dução, ori­en­tada pelos in­te­resses da es­ma­ga­dora mai­oria da so­ci­e­dade.

Mas com todos os seus li­mites e am­bi­gui­dades o con­ceito de de­mo­cracia apli­cado a uma so­ci­e­dade ca­pi­ta­lista, onde o exer­cício do poder da classe do­mi­nante está li­mi­tado pela cor­re­lação de forças no plano so­cial e po­lí­tico, re­pre­senta um avanço li­ber­tador e uma con­quista de he­róicas lutas das classes tra­ba­lha­doras que ne­nhum re­vo­lu­ci­o­nário tem o di­reito de su­bes­timar.

É uma re­a­li­dade his­tó­rica que o poder da bur­guesia se pode exercer sob formas di­versas, di­ta­to­riais ou de­mo­crá­ticas. O fas­cismo, di­ta­dura ter­ro­rista do grande ca­pital mo­no­po­lista, é a forma mais vi­o­lenta de exer­cício do poder ca­pi­ta­lista. E o exer­cício de­mo­crá­tico pode va­riar mui­tís­simo, em função do de­sen­vol­vi­mento da luta de classes e da sua tra­dução no plano po­lí­tico, elei­toral e ins­ti­tu­ci­onal.

Aliás é também ver­dade que o poder con­quis­tado re­vo­lu­ci­o­na­ri­a­mente pelos tra­ba­lha­dores tem co­nhe­cido formas di­fe­ren­ci­adas entre di­fe­rentes países e ao longo do tempo dentro de um mesmo país. A re­a­li­dade é que a Re­vo­lução de Ou­tubro, com traços ge­rais e uni­ver­sais em­bora, não é a mesma de ou­tras re­vo­lu­ções so­ci­a­listas. As re­a­li­dades do Vi­et­name, de Cuba, da Re­pú­blica Po­pular De­mo­crá­tica da Co­reia e da Re­pú­blica Po­pular da China apre­sentam entre si di­fe­renças subs­tan­ciais em re­lação ao par­tido, ao poder po­lí­tico, à or­ga­ni­zação eco­nó­mica e ou­tros as­pectos. É uma evi­dência, para dar apenas um exemplo, que entre a China da re­vo­lução vi­to­riosa em 1949, a da Re­vo­lução Cul­tural ma­oista ou a da ac­tu­a­li­dade as di­fe­renças são grandes.

Isto quer dizer (o que a ce­gueira dog­má­tica e sec­tária não per­mite com­pre­ender) que com uma mesma na­tu­reza de classe e tra­tando-se de uma mesma for­mação eco­nó­mica e so­cial, as formas de poder podem ser va­ri­adas, o que ob­vi­a­mente não é in­di­fe­rente para os tra­ba­lha­dores, para as suas as­pi­ra­ções a uma vida feliz e – par­ti­cu­lar­mente im­por­tante para o tema que nos ocupa – para a sua luta pela trans­for­mação re­vo­lu­ci­o­nária da so­ci­e­dade, pelos seus ob­jec­tivos es­tra­té­gicos do so­ci­a­lismo e do co­mu­nismo.

Lé­nine su­bli­nhou a ne­ces­si­dade de dis­tin­guir entre a forma po­lí­tica de go­verno e a es­sência de um re­gime eco­nó­mico-so­cial, e os co­mu­nistas por­tu­gueses sabem bem, por ex­pe­ri­ência pró­pria, que não é in­di­fe­rente de­sen­volver a luta nas con­di­ções de uma di­ta­dura fas­cista (48 anos), numa de­mo­cracia a ca­minho do so­ci­a­lismo (nos anos que se se­guiram à Re­vo­lução de Abril no con­texto de trans­for­ma­ções de­mo­crá­ticas que ti­veram con­sa­gração cons­ti­tu­ci­onal), du­rante a ofen­siva contra-re­vo­lu­ci­o­nária con­du­zida a partir dos ór­gãos de poder ou no quadro da so­lução po­lí­tica ac­tual.

Como afirmou Álvaro Cu­nhal, «nada tem a ver com o mar­xismo-le­ni­nismo a opi­nião anar­qui­zante se­gundo a qual é in­di­fe­rente à classe ope­rária que o poder da bur­guesia se exerça num re­gime par­la­mentar ou numa di­ta­dura fas­cista, uma vez que num caso e noutro se trata do ca­pi­ta­lismo (…) En­quanto sub­sistir o ca­pi­ta­lismo, o pro­le­ta­riado está in­te­res­sado em lutar para que a di­ta­dura bur­guesa se exerça através de formas o mais de­mo­crá­ticas pos­sí­veis, pois estas não só são as que menos so­fri­mentos lhe acar­retam, como são aquelas que me­lhor lhe per­mitem de­fender os seus di­reitos, forjar a sua uni­dade, re­forçar as suas or­ga­ni­za­ções, li­mitar e en­fra­quecer o poder dos mo­no­pó­lios, ga­nhar as massas para a causa da re­vo­lução so­ci­a­lista. Nesse sen­tido se afirma que a luta pela de­mo­cracia é parte in­te­grante da luta pelo so­ci­a­lismo» (Álvaro Cu­nhal, «A questão do Es­tado, questão cen­tral de cada re­vo­lução»3.

A questão das etapas

A luta re­vo­lu­ci­o­nária pelo so­ci­a­lismo com­porta etapas e fases di­versas em cada país e de país para país. Etapas que, ainda que se si­tuem num marco em que pre­do­minam as re­la­ções de pro­dução ca­pi­ta­listas, em que a rup­tura re­vo­lu­ci­o­nária que muda o poder para as mãos da classe ope­rária e seus ali­ados ainda se não deu, tem ca­rac­te­rís­ticas pró­prias com um sis­tema de poder, cer­ta­mente tran­si­tório, mas que re­flecte os in­te­resses de de­ter­mi­nadas classes so­ciais e frac­ções da bur­guesia e a cor­re­lação de forças na so­ci­e­dade.

No caso con­creto da de­mo­cracia avan­çada que propõe ao povo por­tu­guês o PCP parte da re­a­li­dade da luta de classes em Por­tugal em que a Re­vo­lução de Abril é um marco de­ci­sivo com os seus va­lores e ex­pe­ri­ên­cias e os sulcos pro­fundos que la­vrou na so­ci­e­dade por­tu­guesa. É uma de­mo­cracia si­mul­ta­ne­a­mente po­lí­tica, eco­nó­mica, so­cial e cul­tural, num quadro de so­be­rania na­ci­onal. É uma de­mo­cracia de con­teúdo po­pular e com uma na­tu­reza de classe anti-mo­no­po­lista e anti-im­pe­ri­a­lista. É uma de­mo­cracia que se dis­tingue fun­da­men­tal­mente das de­mo­cra­cias bur­guesas do­mi­nadas pelo ca­pital mo­no­po­lista que – cada vez mais di­mi­nuídas e am­pu­tadas, aliás – existem por essa Eu­ropa fora. É uma de­mo­cracia em que se co­locam ta­refas e ob­jec­tivos que são já ta­refas e ob­jec­tivos de uma so­ci­e­dade so­ci­a­lista: entre a etapa da de­mo­cracia avan­çada e a etapa so­ci­a­lista da re­vo­lução por­tu­guesa, não só não há uma «mu­ralha da China» como são etapas in­ter­li­gadas. Esta a re­a­li­dade com que devem ser con­fron­tados aqueles que, por ig­no­rância ou má fé, es­ta­be­lecem ab­surdos pa­ra­le­lismos com si­tu­a­ções de ou­tros par­tidos, che­gando ao ponto de acusar o PCP de «re­for­mismo» por não co­locar o so­ci­a­lismo como ob­jec­tivo ime­diato da sua acção ou ad­mitir con­ver­gên­cias e ali­anças, mais ou menos tran­si­tó­rias, no plano so­cial e po­lí­tico.

O con­teúdo da de­mo­cracia con­tido no Pro­grama do PCP ad­quire pois um ca­rácter muito «avan­çado», o que não sig­ni­fica que seja o re­sul­tado puro e sim­ples de um me­câ­nico e pau­la­tino de­sen­vol­vi­mento do re­gime de­mo­crá­tico ac­tual. Não, o apro­fun­da­mento da de­mo­cracia nas suas múl­ti­plas di­men­sões será o re­sul­tado da luta de classes, será con­quista e rup­tura, será al­te­ração não apenas de quan­ti­dade mas de qua­li­dade, um pro­cesso de na­tu­reza re­vo­lu­ci­o­nária, cuja forma, mais ou menos pa­cí­fica, de­pen­derá es­sen­ci­al­mente da re­sis­tência do grande ca­pital mo­no­po­lista e cujos con­tornos serão mo­de­lados pela in­ter­venção cri­a­dora das pró­prias massas.

A li­gação di­a­léc­tica da luta pela de­mo­cracia e da luta pelo so­ci­a­lismo é uma re­a­li­dade bem pre­sente em todas as fases e etapas da re­vo­lução por­tu­guesa. Isso acon­teceu du­rante a longa noite fas­cista quando a luta pela li­ber­dade e pela ins­tau­ração de um re­gime de­mo­crá­tico cons­ti­tuíam o ob­jec­tivo cen­tral da luta do povo por­tu­guês. Isso acon­teceu com a re­vo­lução an­ti­fas­cista de 1974 que nas suas li­nhas fun­da­men­tais con­firmou o Pro­grama do Par­tido para a Re­vo­lução De­mo­crá­tica e Na­ci­onal. Isso é hoje par­ti­cu­lar­mente evi­dente com a de­mo­cracia avan­çada do ac­tual Pro­grama que para al­cançar os seus ob­jec­tivos fun­da­men­tais tem de re­a­lizar ta­refas que são já as de uma re­vo­lução so­ci­a­lista. O que pode ser in­com­pre­en­sível para quem tenha do pro­cesso his­tó­rico uma visão me­câ­nica e es­que­má­tica mas que nada tem de sur­pre­en­dente para o PCP: na época da pas­sagem do ca­pi­ta­lismo ao so­ci­a­lismo, uma época em que toda e qual­quer re­vo­lução – de­mo­crá­tica, na­ci­onal-li­ber­ta­dora ou outra – para poder triunfar nos seus pró­prios ob­jec­tivos tem ne­ces­sa­ri­a­mente de ad­quirir um ca­rácter anti-im­pe­ri­a­lista, anti-ca­pi­ta­lista e co­locar-se ob­jec­ti­va­mente na pers­pec­tiva do so­ci­a­lismo.

O ime­diato e a pers­pec­tiva

O pro­cesso de trans­for­mação re­vo­lu­ci­o­nária da so­ci­e­dade não é li­near como a Ave­nida Nevsky (para uti­lizar uma cé­lebre afir­mação de Lé­nine) mas ir­re­gular e aci­den­tado, feito de avanços e re­cuos, de pe­ríodos exal­tantes de afluxo e avanço re­vo­lu­ci­o­nário e de dra­má­tico re­fluxo, de vi­tó­rias e der­rotas. Os co­mu­nistas têm de estar pre­pa­rados para as di­fe­rentes si­tu­a­ções, saber re­cuar e avançar e de­finir em função dos ob­jec­tivos fun­da­men­tais a atingir, as formas de luta mais ade­quadas e as cor­res­pon­dentes ali­anças so­ciais e po­lí­ticas. Não foram as mesmas as ali­anças, con­ver­gên­cias e com­pro­missos sob o fas­cismo ou no tempo da Re­vo­lução de Abril. Não são as mesmas aquelas que uma al­ter­na­tiva pa­trió­tica e de es­querda exige e as de uma de­mo­cracia avan­çada apon­tada ao so­ci­a­lismo. Para o par­tido da classe ope­rária e de todos os tra­ba­lha­dores o seu dever é o de cons­truir ali­anças, por mais li­mi­tadas e con­tin­gentes que sejam, que façam avançar a sua luta. Que haja quem não com­pre­enda esta ne­ces­si­dade não sur­pre­ende, mas é ab­surdo e ri­dí­culo pre­tender jus­ti­ficar tal in­com­pre­ensão no plano ide­o­ló­gico com uma su­posta «pu­reza» mar­xista-le­ni­nista, quando foi pre­ci­sa­mente Lé­nine que zurziu do modo mais con­tun­dente o es­quer­dismo sec­tário, a que chamou «do­ença in­fantil do co­mu­nismo».

O PCP, porque está se­guro da sua in­de­pen­dência de classe e confia nas massas, não re­ceia con­ver­gên­cias e acordos desde que, como no caso da po­sição con­junta com o PS, tal seja do in­te­resse dos tra­ba­lha­dores, do povo e do País. O PCP co­nhece ex­pe­ri­ên­cias po­si­tivas e ne­ga­tivas na his­tória do mo­vi­mento co­mu­nista em ma­téria de po­lí­tica de ali­anças e sabe que elas só podem fa­vo­recer o de­sen­vol­vi­mento da luta quando sal­va­guardam a com­pleta in­de­pen­dência po­lí­tica, ide­o­ló­gica e or­ga­ni­za­tiva do par­tido co­mu­nista. E quando, in­ter­vindo no ime­diato não se perde de vista a pers­pec­tiva e se não con­funde tác­tica e es­tra­tégia.

Sim, na etapa ac­tual da re­vo­lução por­tu­guesa, o PCP luta por trans­for­ma­ções pro­gres­sistas pro­fundas sem co­locar como ta­refa ime­diata a luta pelo so­ci­a­lismo, o que nada tem de ilusão re­for­mista. Porque a questão nunca foi a de pro­curar mu­danças no quadro de um sis­tema ca­pi­ta­lista. Esse é o sen­tido ime­diato da re­sis­tência e da luta quo­ti­diana dos tra­ba­lha­dores que, claro, o ver­ba­lismo me­nos­preza. A questão é pro­curá-las nos li­mites do ca­pi­ta­lismo sem uma pers­pec­tiva e uma linha de in­ter­venção re­vo­lu­ci­o­nária. Se se con­funde go­verno com poder, se se cai numa linha elei­to­ra­lista e não se tem em conta que as massas – a sua or­ga­ni­zação e mo­bi­li­zação – são o factor de­ter­mi­nante do pro­cesso de trans­for­mação so­cial, se se ig­nora que sem a trans­for­mação da base eco­nó­mica e so­cial não é pos­sível con­so­lidar mu­danças po­si­tivas no plano po­lí­tico e, so­bre­tudo, se se perde de vista que o Es­tado é a questão cen­tral de cada re­vo­lução, res­vala-se ine­xo­ra­vel­mente para a adap­tação ao sis­tema, a clau­di­cação e a traição.

Para ter­minar re­produz-se um es­cla­re­cedor es­trato da in­ter­venção do ca­ma­rada Álvaro Cu­nhal na aber­tura do XIV Con­gresso do PCP a pro­pó­sito das al­te­ra­ções então in­tro­du­zidas no Pro­grama do Par­tido «Uma de­mo­cracia avan­çada no li­miar do sé­culo XXI» que havia sido apro­vado no XII Con­gresso em 1998: «Par­tindo da re­flexão e ex­pe­ri­ên­cias pró­prias e das ex­pe­ri­ên­cias in­ter­na­ci­o­nais po­si­tivas e ne­ga­tivas o Pro­grama aponta o pro­jecto de cons­trução ul­te­rior de uma so­ci­e­dade so­ci­a­lista que in­cor­pore e de­sen­volva ele­mentos cons­ti­tu­tivos fun­da­men­tais da de­mo­cracia avan­çada […] Esta li­gação entre a de­mo­cracia avan­çada que é pro­posta e a so­ci­e­dade so­ci­a­lista que apon­tamos no ho­ri­zonte está ra­di­cada na nossa in­ter­venção cons­tante na so­ci­e­dade. O ideal co­mu­nista é para nós não só um pro­jecto para o fu­turo, mas um ideal cuja con­cre­ti­zação se pre­para e de­sen­volve numa ati­tude de re­flexão, de crí­tica, de in­ter­venção, de luta in­ces­sante e con­victa para trans­formar o pre­sente»4.

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1 Do ponto de vista mar­xista-le­ni­nista o Es­tado tem uma na­tu­reza de classe. A ex­pressão «di­ta­dura do pro­le­ta­riado» sig­ni­fica o poder dos tra­ba­lha­dores, que é a de­mo­cracia para a imensa mai­oria do povo, ao passo que sob o ca­pi­ta­lismo vi­gora a «di­ta­dura da bur­guesia», o poder de uma mi­noria sobre a mai­oria da so­ci­e­dade.

2 Lé­nine, Oeu­vres, Edi­tions So­ci­ales-Edi­tions en lan­gues étrangères, Paris-Moscou, 1960, t. 22, p. 156.

3 Álvaro Cu­nhal, «A questão do Es­tado, questão cen­tral de cada re­vo­lução», in Obras Es­co­lhidas, Edi­to­rial «Avante!», Lisboa, tomo IV, 2013, p.223.

4 Álvaro Cu­nhal, Fra­casso e Der­rota do Go­verno de Di­reita do PSD/​Ca­vaco Silva, Dis­cursos Po­lí­ticos 25, Edi­ções «Avante!», Lisboa, 2016, p. 1288.

 



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