Terras mineiras

Sérgio Dias Branco

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A voz so­frida faz do canto de cada pa­lavra um tra­ba­lhoso, ainda que mí­nimo, ganho de fô­lego: «Rin­co­nada, Lunar de Ouro, só tu sabes quanto chorei. / Ri­ti­pata, ri­ti­cucho, pal­la­queaba com os meus amigos. / Ma­dru­gada após ma­dru­gada, su­por­tando frio e fome. / Ma­dru­gada após ma­dru­gada, ai que triste é a vida. / Mãe­zinha lu­ta­dora, tu que tra­ba­lhas dia e noite. / Mãe­zinha lu­ta­dora, tu que tra­ba­lhas dia e noite. / En­quanto os ho­mens, se crêem va­lentes, aban­donam os seus fi­lhos. / En­quanto os ho­mens se crêem va­lentes, con­ti­nuam a beber no bar.» A mu­lher que canta estas pa­la­vras vive e tra­balha em La Rin­co­nada nos Andes pe­ru­anos, a po­vo­ação de maior al­ti­tude no mundo. Ou­vimos a sua voz can­sada e co­ra­josa, mas as ima­gens não mos­tram qual­quer pre­sença hu­mana. A vida es­cas­seia na imensa pai­sagem gé­lida que vemos. A ve­ge­tação baixa é rara. As aves voam so­li­tá­rias. De forma gra­dual, de imagem para imagem, as cons­tru­ções da vila vão apa­re­cendo, mas é fácil con­fundi-las com o resto do ter­ri­tório, como se dele emer­gissem or­ga­ni­ca­mente. Eis a in­tro­dução de El­do­rado XXI (2016).

A se­gunda longa-me­tragem re­a­li­zada por Sa­lomé Lamas a es­trear nas salas de ci­nema por­tu­guesas já foi mos­trada em muitas com­pe­ti­ções e mos­tras no con­ti­nente eu­ropeu e ame­ri­cano, do Fes­tival In­ter­na­ci­onal de Ci­nema de Berlim ao Museu de Arte Mo­derna em Nova Iorque. Venceu no ano pas­sado o Grande Prémio do Porto/​Post/​Doc. A pri­meira longa di­ri­gida pela ci­ne­asta a es­trear em Por­tugal, Terra de Nin­guém (2012), era um do­cu­men­tário que se punha à es­cuta das es­tó­rias de um homem, Paulo, que se dizia ex-mer­ce­nário. El­do­rado XXI é, por con­traste, uma obra do­cu­mental onde a pai­sagem dos Andes é a pri­meira pro­ta­go­nista e, de­pois, os seus ha­bi­tantes, sem que ne­nhum seja de­fi­nido como prin­cipal. O con­texto é de­ta­lhado, ao con­trário do fundo negro sobre o qual Paulo de­sen­volvia as suas nar­ra­tivas, acen­tu­ando o mag­ne­tismo do seu dis­curso. Daí que, após o breve ge­né­rico, o olhar et­no­grá­fico se con­centre no mo­vi­mento pen­dular dos mi­neiros que se cruzam numa ín­greme su­bida. Acom­pa­nhamos o ciclo dos ope­rá­rios que chegam e que partem, de modo con­tínuo, através de um plano que dura mais de 57 mi­nutos. É um gesto ar­ris­cado, ar­ro­jado, mas re­com­pen­sador porque vamos vendo de ma­neira di­fe­rente à me­dida que ou­vimos tes­te­mu­nhos co­mo­ventes, no­ti­ciá­rios ra­di­o­fó­nicos, cam­pa­nhas po­lí­ticas, en­tre­vistas in­for­ma­tivas. Esta é uma terra árida e gla­ciar, so­ci­al­mente vi­o­lenta, sem sa­ne­a­mento bá­sico, aque­ci­mento, po­li­ci­a­mento, ser­viços de saúde, onde viver é um com­bate diário sem des­canso. Um lugar in­fernal, uma «terra de nin­guém», como uma das vozes fe­mi­ninas diz, re­me­tendo-nos para o tí­tulo do filme an­te­rior. Muitas pes­soas foram lá parar por de­ses­pero, na es­pe­rança de en­con­trar algum mi­nério e sair da po­breza. Ou­tras querem en­ri­quecer ra­pi­da­mente através do de­se­jado ouro. A maior parte dos mi­neiros tra­balha nas minas que são pro­pri­e­dade da Cor­po­ração Ananea, que junta mais de 400 em­presas de ex­plo­ração. Sub­siste uma forma de tra­balho an­ces­tral, o ca­chorreo, re­a­li­zado pelas mu­lheres, que não estão au­to­ri­zadas a tra­ba­lhar nas minas. Estas pal­la­queras tra­ba­lham nas pe­dras que so­bram das minas à pro­cura de mi­nério que podem levar con­sigo ao 31.º dia, de­pois de 30 dias a tra­ba­lhar sem re­ceber. Con­ti­nuam a tra­ba­lhar com as mesmas fer­ra­mentas e os mesmos meios dos tempos an­tigos.

A se­gunda parte de El­do­rado XXI opta pela sin­cronia entre a imagem e o som. Nesta opção, dis­tingue-se da pri­meira em que a di­fe­rença entre o que vemos e o que ou­vimos co­loca o es­pec­tador numa po­sição re­fle­xiva, antes de mer­gu­lhar nesta re­a­li­dade e se apro­ximar destas pes­soas. Se o for­mato largo da imagem se ajus­tava à vas­tidão da pai­sagem e à tor­rente de mi­neiros, também se ajusta à pai­sagem mais ín­tima desta po­pu­lação mi­neira, porque o filme vai mol­dando a mu­dança de es­cala para fazer so­bres­sair a li­gação or­gâ­nica entre o grande e o pe­queno. Neste seg­mento, a câ­mara pro­cura sempre com­po­si­ções cui­dadas que tiram par­tido das li­nhas de força de des­lo­ca­ções e po­si­ções na re­lação com o fundo. Dentro de portas, há con­versas sobre o rumo po­lí­tico do Peru e os an­seios sempre por res­ponder de quem vive do seu tra­balho, en­quanto se con­vive entre com­pa­nheiras. Fora de portas, de­corre uma reu­nião das co­mis­sões de tra­ba­lha­dores de Cerro Lunar, uma po­vo­ação pró­xima de La Rin­co­nada, en­quanto as mãos des­cansam de pro­curar mi­nério. Des­do­bram-se os mo­mentos de tra­balho ao longo do dia, nos montes das so­bras ro­chosas e nas ime­di­a­ções das minas. De noite, as ruas são per­cor­ridas por ho­mens que re­gressam cam­ba­le­antes dos bares. As más­caras dis­formes de longos na­rizes e testas en­ru­gadas que os ho­mens usam junto à fo­gueira surgem como um ri­tual de su­bli­mação trans­mi­tido de ge­ração em ge­ração. Fazem-se ofe­rendas a Awi­chita, imagem fe­mi­nina e fértil, guardiã dos te­souros da mon­tanha, para pedir a pro­tecção e a pros­pe­ri­dade dos tra­ba­lha­dores nas minas. Ob­serva-se um sin­cre­tismo cul­tural e re­li­gioso, o culto a Pa­cha­mama, re­ve­ren­ciada pelos povos in­dí­genas dos Andes como a deusa-mãe da terra e do tempo, co­e­xiste com as grandes ce­le­bra­ções ca­tó­licas. O tom final é de festa, para es­mo­recer a tris­teza. A en­trada para uma mina lembra-nos aquilo a que não ti­vemos acesso. Fi­cámos sempre sobre a terra, mas em lu­gares tão inós­pitos que pa­recem se­pul­turas, não fossem as vozes que cantam aquilo que os corpos fazem.




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