Ao olhar para trás

Correia da Fonseca

Como aliás não surpreende, a televisão segue o costume antigo: chegada ao final de cada ano, recua numa sumária viagem retrospectiva para recordar o que veio acontecendo de mais relevante no País e no mundo. Para isso produzirá programas especiais, mas para aquém deles vai fazendo parcelares viagens ao passado. Esse processo tem vindo já a decorrer nos dias mais recentes, quer por referências incluídas nos telenoticiários quer por alusões de comentadores, e não será de todo desinteressante registar o que nelas veio surgindo e também o que nelas pouco ou nada veio sendo destacado. No plano internacional, foi referida a guerra na Síria, como era inevitável, mas nunca como o que de facto ela é: a invasão de um país que estava em sossego perpetrada por uma coligação de bandos fortemente apoiados e municiados pelos Estados Unidos e seus satélites na região. Com o cheiro do petróleo em fundo. Há cinco séculos, no tempo das chamadas descobertas e do intenso e rendoso comércio de especiarias que lhe esteve associado, Sá de Miranda escreveu que «ao cheiro desta canela / o reyno se despovoa». Agora são diferentes o cheiro e a dimensão trágica das consequências, mas é o «cheiro» do petróleo há milénios sepultado naquele solo que atrai para a região a maldição da guerra e suas imediatas consequências: morte, fome, crueldades diversas. Para inocentar o Ocidente euro-atlântico do crime desencadeado, os media inventaram um suposto responsável, o presidente Bashar-el-Assad, e por detrás dele a sempre odiada e também temida Rússia: ambos têm vindo a estar sob acusação explícita ou implícita nos preliminares inventários do ano que têm surgido aqui e ali. Também a eleição de Donald Trump tem sido muito referida e sempre com alta dose de reprovação pelo resultado eleitoral norte-americano de mistura com algum temor. Porém, não será disparatado suspeitar de que, na maioria dos casos, o desagrado pela eleição não decorre das suas consequências negativas para o povo norte-americano, designadamente as largas minorias afro-americanas e latinas, mas sim porque Trump não parece disposto a prosseguir a quase inteiramente restaurada Guerra Fria contra a Rússia de Putin. E ao cheiro desse abrandamento da tensão USA-Rússia muito se alarma o bando de falcões que continua temeroso do comunismo e do que lhe parece sê-lo.

Esta palavra «saudade»…

Quanto aos sumários balanços antecipados da realidade portuguesa no decurso de 2016, seria de esperar como normal o destaque a dar à inversão de tendências decorrente da substituição do governo PSD/CDS pelo Governo do PS. Esse destaque, porém, esteve longe de ocorrer generalizadamente. Não surpreende que assim tenha vindo a ser: a generalidade das operadoras que constituem a chamada televisão portuguesa não dá mínimos sinais de gostar desta solução governativa, antes pelo contrário. Sabe que em 2016 abrandaram as nuvens de desespero que o governo Passos Coelho chamara a pairar sobre o quotidiano dos portugueses, mas parece desagradada por isso. Sabe que o desemprego desceu ainda que apenas um pouco e que o êxodo da emigração jovem parou de crescer, mas não dá por isso sinais de mínima alegria. Não poucas vezes, os apresentadores de programas de informação adiantam como seus alguns dos argumentos habitualmente usados pela direita ex-governante, o inverso não ocorrendo salvo por raríssima excepção. Dir-se-ia que são criaturas saudosas do passado ainda recente, e o aparente fenómeno surge de tal modo que é extensivo a sinais de uma surda animosidade contra o Presidente da República, ainda que seja difícil ter saudades do incomparável PR anterior. É claro que não se lhe pode reprovar o facto de não ser seguidista e obediente perante o actual Executivo: a sua independência é mais do que desejável. Mas, retomando uma imagem anteriormente usada, digamos que a TV portuguesa cheira a oposição. Desejemos-lhe um urgente desodorizante.



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