A fuga de Caxias

Domingos Abrantes

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Passaram-se 55 anos desde que, no dia 4 de Dezembro de 1961, fruto de um longo trabalho de organização e criatividade, teve lugar a fuga da cadeia do Forte de Caxias, vulgarmente conhecida como a fuga do carro blindado de Salazar, uma das mais espectaculares, audaciosas, arriscadas e complexas fugas colectivas que tiveram lugar nas cadeias fascistas.

Naquele dia o regime fascista e o seu aparelho repressivo sofreram pesada derrota e o PCP importante vitória política e organizativa. Oito dos seus quadros, quase todos funcionários do Partido e alguns membros do Comité Central condenados a longos anos de prisão – António Gervásio, António Tereso, Domingos Abrantes, Francisco Miguel, Guilherme da Costa Carvalho, Ilídio Esteves, José Magro e Rolando Verdial – recuperaram a liberdade para retomar o seu lugar na luta clandestina contra o fascismo.

O quadro político, prisional e partidário que se vivia não é pouco relevante na avaliação do significado e importância desta fuga, ocorrida depois da igualmente audaciosa fuga do Forte de Peniche (Janeiro/1960), que restituiu à liberdade o camarada Álvaro Cunhal e mais nove destacados quadros do Partido.

O ano de 1961 constituiu um marco na crise do regime e da luta antifascista, com o início das guerras coloniais; o agravamento da crise económica; o isolamento internacional do regime; dissensões internas nas forças armadas por parte de sectores fascistas que defendiam o afastamento de Salazar para salvar o regime; impacto do assalto ao navio Santa Maria e ao avião da TAP; reforço da actividade e unidade da oposição democrática, tendo como pano de fundo a intensificação da luta de massas e o crescente papel do PCP.

O PCP regista no seu património de organização e luta um significativo número de fugas. Todas elas – colectivas ou individuais – tiveram particularidades e esta não fugiu à regra. A sua singularidade reside no facto de ter sido organizada a partir da infiltração no aparelho de direcção da cadeia; se ter utilizado um carro da cadeia; ter decorrido à luz do dia perante o olhar atónito dos guardas prisionais e da GNR; os fugitivos terem sofrido uma barragem de fogo com armas de guerra; de ter sido preparada e organizada pelo colectivo partidário sem apoio exterior.

O Partido tinha como orientação que os funcionários, uma vez caídos nas garras da polícia, deveriam tentar fugir para recuperar o seu posto na luta clandestina. Uma tarefa que requer atento estudo do sistema de segurança e da rotina dos carcereiros, combate à impaciência, disciplina, perseverança e sobretudo procurar novos caminhos quando os seguidos se revelavam inviáveis.

A fuga de Caxias tem disto tudo em doses redobradas. Tentadas várias soluções, a chave acabou por partir da surpreendente proposta do camarada José Magro de se tentar infiltrar um camarada nos serviços da cadeia para fazer o reconhecimento do espaço e ver das possibilidades de fuga.

A espinhosa tarefa recaiu sobre o camarada Tereso, ex-motorista da Carris e já julgado e condenado. Não foi fácil convencê-lo, como não foi fácil fazer os carcereiros «engolir» a súbita disposição de Tereso «rachar» e colocar-se ao serviço do inimigo.

Tereso revelou enormes qualidades para a tarefa, suportando o desprezo dos outros presos, das famílias e colegas de trabalho, que ignoravam a sua falsa qualidade de rachado. Revelou-se um mestre na arte da dissimulação junto dos carcereiros e do director da cadeia, tornando-se a pessoa da sua confiança, com direito a circular livremente.

Passados vários meses, quando todas as saídas pareciam bloqueadas, descobre o carro e propõe que se estudasse a sua utilização. Rapidamente a proposta foi aceite, ainda que houvesse ideias muito claras quanto à audácia e à complexidade da sua execução.

Até ao dia da fuga foi necessário dar resposta a imensos problemas, a maior parte dos quais só podiam ser testados no momento da fuga, nomeadamente: como fazer chegar o carro sem levantar suspeitas ao único local a que se tinha acesso – o recreio no interior do interior da cadeia –, não se sabendo antecipadamente a hora do recreio; como reagiriam os GNR à fuga realizada literalmente nas suas barbas; como fazer sair o carro do interior da cadeia com os portões fechados; e a questão das questões era saber se o carro era mesmo blindado e como suportaria o potencial de fogo durante um percurso de mais de 900 metros.

A fuga na sua execução crucial durou apenas 60 segundos, que nas circunstâncias pareceram uma eternidade. Provou-se então que o carro era mesmo blindado e capaz de resistir às 19 balas de guerra, e que os carros de Salazar eram à prova de bala, para bem dos comunistas fugitivos e do PCP que assim conseguiu recuperar um elevado número de quadros.

Depois da fuga as autoridades policiais – PIDE e GNR – procederam a um inquérito para averiguar as condições em que se deu a fuga e eventuais colaborações das forças de segurança da cadeia.

Para além da falsa conclusão da PIDE de que a fuga só poderia ter tido o apoio do exterior, e da conclusão da GNR de que esta se processou a uma rapidez superior à capacidade de reacção dos elementos da Guarda, importa deixar registado o essencial do Relatório oficial pelo seu rigor factual: «No dia 4 de Dezembro de 1961, pelas 9h35m, sete reclusos que se encontravam no fosso interior do reduto Norte do Forte de Caxias na hora do recreio, auxiliados por outro recluso da sala de trabalho do mesmo Forte (a sala dos rachados), levaram a cabo uma espectacular e audaciosa fuga, aproveitando com raro sentido de oportunidade não só os meios materiais de que puderam dispor, como o ambiente de confiança que se havia generalizado à volta de um dos evadidos cuja liberdade de movimentação dentro do Forte era praticamente ilimitada e lhe permitiu levar até ao local do início da fuga um automóvel sem despertar a mínima suspeita».

O sucesso da Fuga de Caxias perdurará como exemplo do trabalho colectivo, capacidade organizativa, perseverança na concretização dos objectivos, respeito pelas regras conspirativas e determinação em servir o Partido e a sua luta.

Com excepção de Verdial, que acabaria por trair o Partido, todos os camaradas se empenharam no desenvolvimento da actividade partidária, e todos, com excepção de Guilherme da Costa Carvalho que morreu em 1973, tiveram a felicidade de viver o derrube da ditadura fascista e de dar a sua contribuição para a implantação do regime democrático, objectivo pelo qual lutaram sucessivas gerações de comunistas.



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