O escândalo

Correia da Fonseca

Como é geralmente sabido, o dia 11 de Novembro é consagrado a São Martinho no calendário religioso da Igreja Católica, e Martinho, o santo, foi um cavaleiro de família nobre, nascido para os lados da actual Hungria, que em certa tarde de áspero clima frio decidiu partilhar a sua capa quentinha, dividida ao meio por um golpe da sua espada, com um mendigo que encontrou, tiritando, à beira da estrada que percorria. Por esta narrativa, como diria um conhecido engenheiro nosso contemporâneo, poder-se-á depreender que os costumes na Hungria daquele recuado tempo eram bem mais propensos à solidariedade do que os do actual governo húngaro, o que levanta muros e instala arame farpado para não ser incomodado por gentes que vêm de longe a fugir da guerra, da fome e de várias formas de peste, atributos dos lendários cavaleiros do Apocalipse segundo o profeta João. Voltemos, porém, a Martinho e ao tempo em que ainda não havia sido canonizado para lembrar o que aliás todos já sabem: que o seu gesto de partilha foi um bonito gesto, poder-se-á mesmo dizer que foi exemplar, tanto e de tal modo que como exemplo ficou através dos séculos, por muito que se saiba ou pelo menos se adivinhe que o nobre cavaleiro Martinho tinha lá em casa, isto é, no seu palácio, uma boa meia dúzia de mantas idênticas à que por bem havia sido mutilada, isto para não falar de prováveis lareiras acesas e de grossos muros que não deixariam que o calor extravasasse para a estrada onde se arrastavam mendigos.

(…) tous les deux (…)

É, porém, tempo de explicar por que surge Martinho aqui, em texto obrigado a ter a ver com a televisão que diariamente consumimos ou nos consome. É que foi a televisão portuguesa, embora talvez não em todos os seus canais, que nos fez saber que Francisco, o Papa que de longe veio para Roma em hora que muitos já consideram aziaga, escolheu precisamente o dia de São Martinho, e não decerto por acaso, para dizer palavras que em alguns causaram indignação e terão sido entendidas por muitos como suscitadoras de escândalo, enquanto noutros provocaram aplausos e foram lidas como sinais de inusual coragem. Foi em entrevista concedida ao jornal italiano «La Repubblica» e no decurso dela que Francisco terá afirmado que «os comunistas pensam como os cristãos» ou, segundo uma outra fórmula ainda mais enfática, porventura mais completa e também reproduzida pelos media, «são os comunistas que pensam como os cristãos». Não poderá dizer-se que esta frase corresponde a um abalo telúrico a sacudir o edifício longamente construído do anticomunismo primário com fundações supostamente cristãs, mas é claro que vem colidir com muitos preconceitos, muitos equívocos injustos e até com muitos ódios (ainda que em rigor o ódio seja incompatível com o pensamento cristão). Se a frase de Francisco transporta algum «escândalo», será o escândalo bom da demolição de um conjunto de mentiras perversas e radicalmente anticristãs. Por volta de 1940, um grande poeta francês, o comunista Louis Aragon, utilizando uma forma medievalizante para escapar às censuras nazi e petainista, escreveu: «Celui qui croyait au ciel /celui que n’y croyait pas/ tous les deux aimaient la belle / prisionière des soldats (…)». Era, já então, a implícita afirmação de que perante certas causas os comunistas, ainda que «não creiam no céu», «pensam como os cristãos», para repetir agora as palavras do Papa. Ou talvez de outro modo: pensam como todos cristãos deveriam pensar, acontecendo que infelizmente muitos deles não o fazem. É que são radicalmente cristãos os valores da fraternidade, da partilha, da justiça (lembremos o Sermão da Montanha), da recusa do farisaísmo, que estão no cerne dos objectivos comunistas. Sendo que na indiferença de muitos cristãos (talvez entre aspas, talvez sem elas) por estes valores que, verdadeiramente, está o escândalo.

 



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