A televisão beligerante
Há dois ou três dias, a televisão trouxe-nos notícias das eleições na Moldávia não se esquecendo de dizer que, dos dois candidatos à presidência do país, um era a favor da Rússia e o outro a favor «da Europa». Os telespectadores ouvem e já nem se dão conta de que a fórmula usada implica a exclusão da Rússia do contexto europeu e, sem que disso nos demos clara conta, sugere uma pertença da Rússia ao Oriente que na sensibilidade dos europeus desatentos e longamente manipulados está confusamente relacionado com requintadas crueldades e défices civilizacionais capazes de meterem algum medo. Vai longe o tempo em que De Gaulle, contudo longe de poder ser suspeito de simpatias comunistas, falava de uma Europa «do Atlântico aos Urais», isto é, de uma pacificação do continente que seria o inverso da Guerra Fria então já em fase de arranque. Entretanto a URSS autodestruiu-se e o Ocidente euroatlântico acreditou que conseguira uma vitória para durar mil anos, como o nazismo previra para o afinal derrotado III Reich, mas nem assim amainou o seu belicismo inveterado: quem for capaz de o fazer facilmente enumere as guerras de vária dimensão em que os Estados Unidos, coroados como soberanos absolutos do Ocidente, intervieram directa ou indirectamente. Entende-se: o capitalismo precisa de guerras e da conquista de mercado a bem ou a mal como de pão para a boca. Como é sabido, do lado de lá do Atlântico proliferam as mais diversas religiões e seitas religiosas, mas na verdade a mais forte e dominante religião que impregna a vida norte-americana é a da «struggle for life» aplicada às sociedades humanas, isto é, a convicção de que a brutalidade há-de comandar a existência colectiva e, consequentemente, de que é legítimo e mesmo recomendável usar a força na generalidade das circunstâncias. Este revelador princípio de ordem geral é detectável na televisão não só quando ela nos informa da grande frequência de crimes de morte havidos nos Estados Unidos mas também quando, em frequentes documentários sobre a vida animal que são produção norte-americana ou de outros países que partilham a concepção da bruteza como adequada forma de convívio social, a tónica da informação por eles prestada é a permanente luta entre espécies ou até dentro da mesma espécie. Assim se insinuando como lei da vida o que de facto é lei da morte.
Para que
Sendo assim, não surpreende decerto que o capitalismo USA sinta a saudade de conflitos militares que o engordem, e é neste quadro que deve ser entendido o já claro lançamento de uma reedição, por agora ainda sob uma forma relativamente «soft», da Guerra Fria havida no século passado, ofensiva de que diariamente nos chegam sinais claros e concretos graças aos media que os Estados Unidos controlam em todo o Ocidente e não só. De passagem, anote-se para nosso proveito que uma interessante tradição dos serviços secretos norte-americanos é a presença de «gente sua» nos mais importantes órgãos de informação dos quatro cantos do mundo. Porém, o que mais importa agora é atender ao que se passa na generalidade da informação mediática e talvez mais especialmente na televisão que todos os dias é visita de nossa casa e do nosso cérebro. Com maior ou menor intensidade, é uma televisão de guerra, embora de guerra fria, e é imperioso que disso tenhamos permanente consciência. O relativo clamor mediático suscitado pela legalíssima passagem pela nossa Zona Económica Exclusiva de um porta-aviões russo, dizem que desactualizado, e de dois outros modestos navios, foi um exemplo recente mas não dos mais significativos: a campanha (des)informativa acerca de bombardeamentos russos na Síria, como se não houvesse a precedência de aviões USA contra as forças leais a Damasco, foi e é decerto mais importante. De facto, a TV portuguesa está em guerra contra a Rússia e é saudável ter presente esse facto. Para que nos mantenhamos lúcidos. Ou, como por vezes diz o povo, para que não nos comam por parvos.