A última viagem de Lénine

José Carlos Faria

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E se Vladimir Illitch Ulianov (Lénine) desembarcasse, de repente, em Lisboa num comboio, transfronteiriço e transtemporal, que, saído de Moscovo em 1924, circulasse precisamente através das fronteiras do tempo com 90 anos de atraso?

É este o ponto de partida do espectáculo «A Última Viagem de Lénine», montado pela «Associação Cultural Não Matem o Mensageiro», nascida em 2014 e que se apresenta como o «único grupo de teatro político português», tendo por objectivo «um teatro transformador que politiza, democratiza e faz pensar».

O texto, bem urdido, com base num exaustivo levantamento historiográfico, recorre a citações de obras, discursos e relatórios, episódios lendários e também à ficção, essa que, amiúde, ao romper a película do superficial, é a única capaz de nos devolver, recriada, a verdadeira e profunda dimensão do real. Recusando com firmeza a vulgaridade fácil e obscena das calúnias e, sobretudo, prescindindo inteligentemente do primarismo óbvio e redutor das loas banais, desenvolve-se, ao longo de 90 minutos, sem recurso ao lugar comum, uma quase biografia na qual o registo de Vladimir, o amigo; Illitch, o amante, Ulianov, o exilado; Lénine, o político, é exposto em contexto. Através de uma ironia bem humorada constata-se que, em termos de igualdade, justiça e direitos sociais, culturais e económicos, muitos deles adquiridos pela primeira vez com a Revolução de Outubro de 1917, o nosso mundo tão complexo, no desenrolar do quotidiano, mudou muito menos do que o desejável e que, importa cada vez mais transformá-lo, até porque mesmo «os comboios atrasados acabam sempre por chegar»…

Num dispositivo cénico, cujo despojamento deliberado sinaliza uma gare ferroviária, destaca-se um banco que assume diversas funções (local de espera, carruagem em marcha, tribuna de intervenção política…), enquanto a sonoplastia vai marcando e situando múltiplas envolvências e ocorrências. O trabalho de encenação serve com bastante eficácia quer a exigente escrita da peça quer o decorrente jogo do actor. E é aqui, no capítulo da interpretação, (já que o texto é sempre um pretexto) que este monólogo atinge o seu pico, com uma notável capacidade de gestualidade, ocupação do espaço, excelente consistência de timbre e dicção no retrato, feito, em simultâneo, com subtileza, energia e intencionalidade, das diversas facetas da personagem.

O público, que lotava por completo a sala-estúdio do Teatro da Trindade foi sensível à qualidade manifesta a que tinha assistido e retribuiu com uma calorosa adesão.

Este espectáculo, que incorpora, aqui e ali, saudáveis traços do teatro de «agit-prop» soviético (Meyerhold, por exemplo), foi montado sem nenhum apoio oficial e reclama pois que se dê o necessário passo em frente para que não se perca a oportunidade de o ver, porque, tal como afirmava o poeta Vladimir Mayakovsky, «é tempo de lançar de novo ao vento as ideias de Lenine», «o mais terreno dos homens».

Lembra o programa de sala: «Na luta de classes não há espectadores. Sejamos nós os seus actores».

 

FICHA TÉCNICA:

Produção: NÃO MATEM O MENSAGEIRO (www.naomatemomensageiro.pt)

Texto: ANTÓNIO SANTOS

Interpretação: ANDRÉ LEVY

Encenação: MAFALDA SANTOS

Som e luz: SUSANA GOUVEIA e MARCOS LOUSA

Vozes: LUÍSA ORTIGOSO, RITA LELLO, CARLA JANEIRO, PEDRO VIEIRA, JOSÉ GRAÇA, ANTÓNIO OLAIO,

MAFALDA SANTOS, PEDRO PENILO, FERNANDO RAMOS, JOSÉ COELHO, MÁRIO OLIVEIRA, ANA MARGARIDA FREITAS




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