«A crise na e da União Europeia»
Da crise económica, aos refugiados e ao terrorismo, a crise na e da UE foi escalpelizada num seminário organizado pelo PCP e pelo Grupo Confederal da Esquerda Europeia/Esquerda Verde Nórdica no Parlamento Europeu (GUE/NGL), tendo sido salientadas vertentes da crise estrutural do capitalismo na Europa, a que os monopólios procuram responder aprofundando os mecanismos militares e federalistas com consequências para os países e os povos, colocando a necessidade de rupturas democráticas e progressistas que abram um caminho alternativo.
«Salvar a Europa significa cada vez mais derrotar a UE»
Na iniciativa que decorreu durante toda a tarde de sexta-feira, 14, numa unidade hoteleira em Lisboa, foram feitas 16 intervenções. No final, Ângelo Alves, da Comissão Política do Comité Central do PCP salientou alguns das ideias que sobressaíram no Seminário e afirmou os eixos centrais que, para o Partido, permitem compreender a crise na e da UE e indicar o caminho da sua superação.
Desde logo a identificação de que «vivemos um dos mais delicados, complexos e perigosos períodos após a Segunda Guerra Mundial», com o ressurgimento da «guerra e o fascismo; em que conquistas sociais alcançadas pela luta de gerações e gerações de trabalhadores são atacadas abertamente; em que os direitos democráticos e de soberania dos povos são postos em causa; e em que os mais básicos direitos humanos são espezinhados e negados às vítimas» da actual crise migratória.
Para tal contribui, por um lado, a crise estrutural do capitalismo e «a ofensiva imperialista que com ela se aprofunda», mas, igualmente, o «muito complexo processo de rearrumação de forças no plano internacional», assim como a edificação e aprofundamento de uma «superestrutura de natureza imperialista», acrescentou Ângelo Alves.
«Contudo, o grau de concentração de poder a que se chegou é tão grande, as contradições – nomeadamente entre a base e a superestrutura – estão a intensificar-se de tal forma, que é correcto afirmar que à enorme magnitude da crise estrutural do capitalismo no espaço da União Europeia (UE) corresponde uma profunda crise da UE, dos seus pilares, estrutura e fundamentos».
Insanável
«Esta crise está associada e atinge em cheio o principal instrumento de domínio económico da UE – o Euro e a União Económica e Monetária (UEM)», prosseguiu o dirigente comunista, para quem «se há realidade que é hoje evidente, essa é a de que a existência do Euro, longe de ser solução para coisa alguma, é, ao invés, um dos principais factores da crise económica, financeira e social, impeditivo do desenvolvimento económico e social de vários estados membro, elemento agressor de direitos e dignidade dos trabalhadores e dos povos».
«É essa a sua natureza de classe», constatou Ângelo Alves, que frisando que a situação de Portugal «é bem elucidativa dos embates de classe e de soberania nacional que estão em curso no seio da UE», e que a Grécia demonstra ser «uma ilusão ou uma tremenda mentira, afirmar-se que se pode desenvolver uma política progressista de real defesa dos interesses dos trabalhadores e do povo aceitando simultaneamente os constrangimentos da UE e em particular do Euro», considerou que a questão que se coloca ao nosso país e ao nosso povo «é a premência, possibilidade e viabilidade da libertação dessa amarra».
Libertação tanto mais necessária quanto «as instituições europeias se lançam em tentativas que visam aprofundar ainda mais o colete-de-forças» revelando traços de «despudorada arrogância e postura do tipo colonial», mostrando «o grau de promiscuidade entre o poder político e o poder económico», elevando a «deriva securitária e autoritária no plano “interno”, e militarista e intervencionista no plano “externo”», as quais acompanham «o processo de ataque a direitos sociais, económicos e democráticos», disse ainda.
«É este o resultado do velho e putrefacto consenso de Bruxelas entre direita e social-democracia», acusou. Por isso, lembrando não haver «espaço para uma “refundação” que ponha em causa a natureza de classe e o rumo da UE», realçou que «salvar a Europa significa cada vez mais derrotar a UE».
Multifacetada
A abrir o Seminário, coube a João Pimenta Lopes, deputado do PCP no PE, sinalizar que o objectivo da iniciativa era «a aprofundar a reflexão em torno das diversas vertentes que enformam a crise na e da UE», o que conduz, por seu lado, à reflexão sobre as questões que estão colocadas aos povos para alcançarem «uma outra Europa de solidariedade, de paz e de cooperação».
Uma dessas vertentes é a crise migratória, desencadeada pelo perfil crescentemente militarista da UE nas ingerências e guerras punitivas e de saque, as quais têm sido promovidas conjuntamente com a NATO. Agressões que acarretam como consequência a desesperada tentativa de milhares de seres humanos, oriundos dos países e regiões alvo das campanhas imperialistas, de chegarem à Europa. Num círculo vicioso, a vaga migratória tem servido de pretexto para o aprofundamento de medidas securitárias no espaço da UE, para a instrumentalização de fenómenos marginais como o terrorismo acicatado pelas ofensivas bélicas sucessivas, para o ressurgimento do racismo, da xenofobia e do nazi-fascismo, arrolou João Pimenta Lopes na abertura dos trabalhos.
A estas dimensões da crise na e da UE, referiu-se Ilda Figueiredo, dirigente do CPPC, que responsabilizou a UE, os EUA e a NATO «por todos os grandes conflitos militares da actualidade», particularmente esta última contando com o «reforço da UE como seu pilar europeu», e denunciou os projectos e manobras desencadeados sob falsos pretextos para ameaçar e cercar a Rússia, provocando uma corrida aos armamentos e avolumando o perigo de um conflito com recurso a engenhos nucleares.
Um dos pretextos invocados pelo imperialismo para intervir sem freio é o do «combate ao terrorismo», salientou, por seu lado, o jornalista José Goulão, para quem «não é difícil encontrar exemplos do papel estratégico desempenhado por grupos terroristas no sistema operacional militar dos EUA e dos mais poderosos países da UE».
«Ora, o recurso de grandes potências europeias ao terrorismo como braço complementar dos seus exércitos tinha de ter efeitos perversos», acrescentou, antes de acusar os dirigentes europeus de não saberem lidar com o terrorismo doméstico. «E quando tomam decisões, [os dirigentes europeus] transformam os cidadãos [dos países da UE] em duplas vítimas: do terror assim implantado e das medidas de excepção e securitárias».
A França é hoje um território em que se concentram todos os factores já invocados. Foi o que disse, em síntese, Patrick Margaté, do Partido Comunista Francês, que para além de atribuir ao militarismo como eixo da política externa, à repressão interna e à espoliação dos povos o papel de propulsores do terrorismo e dos fluxos migratórios, lamentou a estigmatização dos migrantes e o facto de estes, até hoje, terem conhecido da parte da UE somente desumanidade. Tais fenómenos servem para «jogar com os medos», caucionar o belicismo e servem de pasto fértil ao avanço da extrema-direita como força político-eleitoral.
Paulo Costa, membro do colectivo do PCP no PE, foi igualmente incisivo nas críticas à política migratória da UE. Perante o drama humanitário que se desenrola com o Mediterrâneo transformado numa vala comum e campos de concentração dentro ou às suas portas, avança na «criação de uma verdadeira “Europa Fortaleza” que se concretiza na externalização das fronteiras marítimas para países terceiros, nas restrições à livre circulação de pessoas, na discriminação e expulsão de refugiados, violando e desrespeitando a Carta das Nações Unidas, os princípios inerentes ao Direito de asilo e tratando como uma ameaça seres humanos que fogem à fome, à miséria, à guerra, à perseguição e à morte», afirmou.
Contundente foi, também, Aleeksiy Volomyr, membro do Comité Central do Partido Comunista da Ucrânia, que recordou que dois anos e meio após o golpe de Estado no país, apoiado e promovido por países da UE que agora fecham os olhos à violação de direitos humanos que então invocaram, agravam-se as clivagens sociais em resultado da pauperização generalizada e da erosão de direitos económicos e sociais, «da imposição do nazi-fascismo como ideologia do Estado, acompanhada por um anticomunismo e uma russofobia agressivos». Tudo elementos que podem ser mola de uma vaga migratória para a UE, estimulada, aliás, por um governo que não tem nada para oferecer a tantos desempregados e indigentes.
É o sistema
Outro vector da crise na e da UE abordado no seminário foi a situação económica e social, as contradições internas e os constrangimentos antidemocráticos. Sobre a banca, debruçou-se Miguel Tiago, deputado do PCP na Assembleia da República, que cotejando sempre com exemplos do ocorrido em Portugal, defendeu que «a crise não tem origem na banca» mas «no sistema capitalista», em cujo o sector financeiro «é utilizado como instrumento dos grande grupos económicos, dos monopólios e da classe dominante para o agravamento da exploração» e para a acumulação e concentração de capital.
Neste processo, Miguel Tiago alertou para o risco para os povos e para os estados, «não só potencial mas já materializado», do controlo privado da banca e da constituição de megabancos, facilitados pela UE que adopta regras e instrumentos consoante os interesses daqueles. Caso da União Bancária, que significa «um mecanismo de supervisão à escala dos próprios bancos e não dos estados ou dos serviços prestados pelo sistema financeiro», retirando da esfera soberana dos povos qualquer mecanismo e influência.
Por outro lado, ainda na situação económica e social para a qual foram empurrados os trabalhadores e as camadas antimonopolistas da UE, emergem lições a retirar do caminho percorrido e sobejam razões para contestar o seu aprofundamento. João Dinis, da CNA, lembrou que a política de subsidiação na agricultura e pescas foi imposta por Bruxelas visando comprimir os pequenos e médios produtores e eliminá-los, deixando caminho livre para o domínio dos grandes proprietários rurais e armadores, da agro-indústria e da grande distribuição alimentar, os quais, além do mais, são há anos os primeiros e principais beneficiários desses mesmos subsídios.
O rastro de destruição semeado pelas orientações neoliberais identifica-se, igualmente, no desemprego, na pobreza, na precariedade e nos baixos salários e pensões, aos quais Augusto Praça, da CGTP-IN, afirmou ser vital responder com o prosseguimento da luta em cada um dos países pelo crescimento dos salários, a efectivação e alargamento da contratação colectiva e a garantia da estabilidade laboral, a redução da jornada de trabalho e a criação de emprego, por uma política fiscal progressiva e serviços públicos na Educação, Saúde e Segurança Social.
Num balanço mais geral, João Rodrigues, Economista, denunciou que Portugal inverteu a trajectória de convergência com «o centro» nos últimos 20 anos, acumulando ciclos longos de estagnação económica e contracção do investimento que agravaram o carácter periférico da economia do País e elevaram défices e dívidas externos para níveis colossais.
Não há por isso saída da crise sem a mobilização de «instrumentos de política à escala dos estados. E que instrumentos são esses?, questionou. «Renegociação da dívida seguida de reestruturação, políticas soberanas de moeda-crédito, de produção e comércio», resumiu.
Fugas em frente
Ora a estas necessidades e reivindicações, tem vindo a responder a UE somando neoliberalismo e federalismo, notou, ao intervir no seminário, Miguel Viegas, deputado do PCP no PE, para quem as sucessivas tentativas de «recauchutar o processo» de integração capitalista da UE – não raramente introduzindo a perigosa ideia de uma integração que se encontra incompleta, incluindo ao nível orçamental e político – conduz a mais e mais graves contradições no seu seio.
Fugas em frente embrulhadas numa pretensa agenda social que nunca existiu, mas sempre levando mais longe o desrespeito e até o afrontamento pela soberania e a possibilidade de decisão democrática dos povos, realçaram, por seu turno, Fábio Amato, do Partido da Refundação Comunista Italiana, e Stavri Kalopsidiotou, do AKEL do Chiopre. Ambos deram vários exemplos (os memorandos das troikas, a austeridade inevitável e a privatização dos monopṕlios naturais públicos e das funções sociais estatais, os tratados ou não referendados ou redigidos para que o não fossem) e enfatizaram a necessidade do reforço da cooperação das forças progressistas e dos povos para romper com os instrumentos e condicionalismos da UE.
Quem já rompeu com a UE foi o povo britânico, que decidiu abandoná-la em referendo realizado a 23 de Junho. Contrariando os argumentos chauvinistas e a campanha racista e xenófoba da extrema-direita e face à divisão da social-democracia, explicou Liz Payne, do Partido Comunista Britânico, os comunistas defendiam não um Brexit mas um Lexit. Ou seja, uma saída projectando a alternativa popular que «só é possível fora da UE», e de qual fazem parte «um forte sector público, a aposta no investimento [produtivo], a valorização do trabalho e dos trabalhadores, uma vital participação democrática, a genuína soberania e a cooperação e solidariedade internacionalistas».
Em Portugal, a alternativa político-instituicional à eternização da via de sentido único que foi aplicada pelo anterior governo PSD/CDS – alternativa que permitiu, mesmo de forma limitada, repor direitos e rendimentos – é alvo de chantagens e ameaças de sanções, deixando «cair por terra a máscara da UE solidária e da coesão», aludiu Paula Santos, deputada do PCP na AR, concluindo, a propósito, que «a aplicação de sanções resulta das imposições que constam da UEM, do Pacto de Estabilidade, da Governação Económica, do Tratado Orçamental, do Semestre Europeu», e que o PCP é a única força política em Portugal que aponta que «a solução passa pela libertação do País de todos estes constrangimentos».
Ruptura
Antes do encerramento do seminário, a cargo de Ângelo Alves, João Ferreira, deputado do PCP no PE, adiantou que «perante a profunda e arrastada crise na e da União Europeia – crise que confirma os seus limites históricos – vale a pena afirmar com convicção que uma outra Europa dos trabalhadores e dos povos é possível e necessária».
A questão coloca-se, pois, em «como chegar a estas novas formas de cooperação e de como romper com o processo de integração capitalista». «Não existindo receitas pré-determinadas», este processo «é inseparável da luta dos povos em cada país».
«Luta que passa pela rejeição das imposições da União Europeia» e a «recusa das pressões e chantagens exercidas sobre países soberanos»; «por desmascarar e desmontar as tentativas de branqueamento e de aprofundamento da União Económica e Monetária»; que «deve explorar contradições que se manifestam e tendem a aprofundar». Luta «contra os tratados de livre comércio, como o CETA e o TTIP, e outros instrumentos de dominação e subjugação dos povos», pela «exigência de reversibilidade dos tratados e pela adaptação do estatuto de cada país à vontade do seu povo».
«Uma luta pelo reconhecimento do princípio da igualdade entre estados», que convoca «a progressiva alteração da correlação de forças em cada país» e exige «o reforço da articulação e cooperação das forças progressistas e de esquerda», elencou João Ferreira.