«El Condor Pasa»

Nuno Gomes dos Santos

Um senhor alemão, com ar de instalado na vida e decerto tendo, no seu amplo escritório, obras de arte excelentes, como, por exemplo, quadros de gráficos históricos imortalizando dias felizes de credores troikando sorrisos após boa cobrança e jarras que, em vez de acolherem flores, ostentam 27 estrelas (dias antes eram 28, mas uma deu em cadente...) unidas (?) pela ráfia pífia proveniente de uma Europa anti-solidária e classista, disse que Portugal iria pedir um novo resgate e, depois, achando-se ligeiramente excessivo, condicionou a hipotética situação acrescentando que tal aconteceria no caso de Portugal não se portar bem.

É claro que houve logo quem desculpasse o fulano, ora bem!, o homem estava com brexitofobia aguda e sentia-se injustamente incompreendido pelas críticas crescentes à sua (estranha?) forma de vida, comprovada por palavras ausentes dos discursos (quem, gente, povo, solidariedade) e omnipresentes nos mesmos (quanto, quantos, mercados, cêntimos, défices). Sintomaticamente, o homem desconhecia em absoluto, após exaustivos exames que confirmaram isso mesmo, o significado da palavra felicidade o que, segundo os seus apoiantes, não tinha importância nenhuma, que o mundo não estava nem está para mariquices.

Mas que é lá isso?, ripostaram muitos portugueses e não poucos estrangeiros dignos, que os há. Então porquê falar-se em resgate quando se andou por aí a dizer à boca cheia que tínhamos sido os melhores cumpridores das ordens euromerkelianas com o amén dos seus apaniguados?

A coisa, soube-se logo que as borras do espirro do senhor instalado na vida assentaram, só podia ser doença, falta de ar, incapacidade crónica de desfazer o nó da gravata, imprudentemente apertadote, ou trauma latente nascido naquela nefasta vez que tivera de pagar juros por, na infância, ter perdido ao burro em pé.

Dirão que brinco com coisas que não autorizam chacota. Porém, falo mesmo a sério, pesem embora as metáforas. Um homem (?) como este, que motivou esta crónica de escárnio e maldizer, que sabe da vida?, que sente dela?, como não se espantará que não se cobre um cêntimo por um beijo ou por uma carícia de avô nos cabelos desalinhados de um neto? Falamos de boa vontade, vá lá, um beijo pois que seja, uma carícia tolera-se. Mas... vários beijos? Dois dígitos de carícias? Aí parou!

Puseram-se então os sábios ainda não contaminados pelo admirável mundo novo a estudar este assunto e, à primeira vista, acharam a coisa deveras estranha, tanto mais que a versão oficial era esta: essa gente está a viver acima das suas possibilidades!

Eureka! Agora sim, está tudo esclarecido, preto no branco, transparentíssimo: esse sonho de viver normal, com lágrimas e sorrisos, com abraços e comoções, com tectos, camas, amores, afectos é, minhas senhoras e meus senhores, um luxo! E os tempos não estão para luxos!

Seguem-se, por consequência e com toda a razão, impostos, dívidas, resgates, que é o que custa a vida vivida acima das possibilidades impostas por senhores instalados na vida, incomodados pelo aperto do nó da gravata mas ele há as aparências, espectadores e actores de grandes performances onde prima a poesia dos números, o sobe e desce das bolsas, o grand finale dos mercados.

Não é, pois, de admirar que haja quem pense muito a sério se será melhor pertencer à família do euro se não. Bem me lembro (e gosto!) de »El Condor Pasa (if I could)», canção do folclore dos Andes bem tratada por Daniel Alomia Robles e muito bem interpretada por Paul Simon e Art Garfunkel que, às tantas, diz «I'd rather be a forrest than a street» («preferia ser uma floresta do que uma estrada»). Ser floresta sim, no sentido de comunidade, de partilha de lugares e de seivas. Mas ser uma floresta outra, cada árvore a puxar pelo seu galho, as maiores a taparem o sol às mais pequenas e a impedir-lhes a fotossíntese, não.

Que me perdoe o senhor instalado na vida e rodeado de 27 estrelas mas, assim sendo, escolho a estrada. O caminho que se faz caminhando.

 

Nota: o condor, para o povo andino, era símbolo de liberdade.



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