Semear nas águas

Correia da Fonseca

De todos os episódios da série «Conversas do Tempo da Outra Senhora» que já foram transmitidos sempre na «2» e sempre por volta da meia-noite, o que pudemos ver na passada segunda-feira foi sem dúvida o que no plano estético mais recompensou a coragem dos que adiaram a hora do repouso nocturno para acederem a mais algumas informações, sempre difíceis, acerca dos anos do fascismo português: filmado sempre ou quase sempre a bordo de uma fragata do Tejo, a «Liberdade», incluiu fascinantes imagens do rio entre Vila Franca e Alhandra, e só por elas já teria valido a pena o adiamento do sono. Mas no episódio havia muito mais: intitulado «Passeios no Tejo», contava-nos como naquela zona, onde a luta clandestina contra a ditadura teve especiais intensidade e coragem, foram organizadas reuniões de figuras destacadas da cultura portuguesa e como tais encontros, sempre em maior ou menor grau conspirativo, se realizaram não em qualquer casa eventualmente sob vigilância repressiva mas sim a bordo de uma fragata vogando no rio. Tratava-se decerto de uma questão de segurança, pois aquelas reuniões eram uma espécie de sementeira de um futuro livre, mas era também, de facto e ainda que talvez não conscientemente, uma homenagem a tradições laborais daquela zona.

A dívida

Como se sabe, foi ali que viveram e lutaram dois grandes escritores portugueses, Soeiro Pereira Gomes e Alves Redol, e que ali nasceu e se afirmou o movimento literário português que foi designado por Neo-Realismo na impossibilidade de na altura ser designado por Realismo Socialista, o que seria mais nítido e adequado. Por razões que bem se compreende, contra o Neo-Realismo prontamente se mobilizaram forças da área cultural e não só, diversas e tão empenhadas que têm vindo a manter-se activas mesmo depois de Abril. Entretanto, porém, graças ao poder que os factos têm quando pela sua natureza são inapagáveis, e ao esforço de alguns, entre os quais se destaca António Redol, filho do escritor, e o próprio município de Vila Franca, tornou-se possível a existência do Museu do Neo-Realismo, ali sediado. Neste quadro, tornou-se difícil erradicar da memória colectiva o facto que foi (e talvez de certo modo e em algum grau continue a ser, o que é ponto a estudar e discutir) o Neo-Realismo. De qualquer modo, basta ter visto este «Os passeios no Tejo» para entender os sólidos motivos do fascismo e seus arredores para condená-lo à morte embora sem conseguir a execução da sentença: nas imagens dos anos 40 que o telefilme nos mostrou pudemos ver Álvaro Cunhal, Soeiro Pereira Gomes, Dias Lourenço, Alves Redol, Fernando Lopes-Graça e mais alguns a quem a PIDE de bom grado teria deitado as garras, tudo gente que integrou um movimento cultural e político de primeiríssimo relevo no século XX português. Não será preciso acrescentar muito mais para que se entenda como teria sido útil e adequado, se não necessário, que um programa assim fosse transmitido em horário que o tornasse acessível a um amplo público. Acrescente-se, já agora, que o próprio movimento neo-realista é, pela sua importância cultural e sociopolítica, credor de divulgação e abordagens que nunca lhe foram concedidas. Por conta desse débito, tivemos agora este admirável trabalho da equipa liderada por Edgar Feldman. Foi bom. Mas também serviu para lembrar a dívida em aberto.




Mais artigos de: Argumentos

Espaço de luta<br>e intervenção

Entrámos já nos dias finais da 86.ª edição da Feira do Livro de Lisboa. Para os muitos visitantes que por lá têm passado estes dias são as últimas oportunidades de poder adquirir aquele livro que andaram espreitando a feira toda, o outro que esperaram o ano...

Comunidades portuguesas<br>– um activo estratégico

Numa época em que somos diariamente bombardeados com notícias, e respectivas consequências, sobre activos e lixos tóxicos, pressões, ingerências e chantagens, falemos dos cerca de cinco milhões de portugueses que se encontram espalhados pelo mundo e que constituem um activo...

Direito à mobilidade

No passado dia 23 de Maio, o Grupo Parlamentar do PCP promoveu, na Assembleia da República, uma Audição Pública sobre Acessibilidades para pessoas com deficiência e/ou mobilidade reduzida, com o objectivo de recolher contributos e opiniões sobre as...