A lei do capital

Sérgio Dias Branco

Thi­erry Tau­gour­deau, ope­rário fa­bril, foi des­pe­dido junto com mais de 750 co­legas. Tem 51 anos e está de­sem­pre­gado há quase dois. Na pri­meira cena de A lei do mer­cado (La loi du marché, 2015), tem um as­sis­tente de um centro de em­prego à sua frente. Ques­tiona-o sobre o facto de ter feito uma for­mação para ope­rador de grua na cons­trução civil sem qual­quer pos­si­bi­li­dade de en­con­trar em­prego no fim desse pro­cesso. Tanto ele como ou­tros doze de­sem­pre­gados, muitos deles jo­vens, não ti­nham a ex­pe­ri­ência re­que­rida pelo em­pre­gador. A su­cessão de cursos e es­tá­gios pa­rece ali­mentar-se a si pró­pria. No fim, acaba sempre sem tra­balho e apa­ren­te­mente sem saída. A cena anuncia o tom do filme: a câ­mara co­loca o es­pec­tador à es­cuta e filma, em con­ti­nui­dade, uma con­versa que se torna cada vez mais in­tensa, mas sem ex­cessos dra­má­ticos, nunca mos­trando as duas per­so­na­gens ao mesmo tempo no ecrã. Quando a câ­mara roda de um para o outro é a dis­tância entre eles que so­bressai e dá res­so­nância ao de­sam­paro de Thi­erry – in­ter­rom­pido quando fala, ig­no­rado na sua in­dig­nação.

Este re­a­lismo que se con­centra sem des­vios nos rostos so­fridos, nas vozes mo­du­ladas, nos corpos tensos, tem o seu foco prin­cipal no actor francês Vin­cent Lindon, ven­cedor do Prémio de Me­lhor Actor no Fes­tival de Ci­nema de Cannes e do César na mesma ca­te­goria. A sua tris­teza é a ex­pressão dra­má­tica do es­ma­ga­mento de al­guém que vive do seu tra­balho e que perdeu esse ganha-pão. A lei do mer­cado de tra­balho ca­pi­ta­lista que o tí­tulo re­fere abate-se sobre ele, si­tu­ação após si­tu­ação, hu­mi­lhação após hu­mi­lhação, num me­ca­nismo de sub­missão gra­dual e plá­cido. Uma en­tre­vista via Skype re­vela-se uma perda de tempo ve­xa­tória. A ten­ta­tiva de venda de uma ca­ra­vana fa­mi­liar não se con­cre­tiza porque o com­prador quer ne­go­ciar um preço muito in­fe­rior àquele que es­tava acor­dado. Uma ofi­cina de treino das suas ca­pa­ci­dades como can­di­dato sub­mete-o aos co­men­tá­rios ne­ga­tivos de quem está na mesma si­tu­ação que ele e aceitou a con­cor­rência sel­vagem como prin­cípio. De­ma­siado velho, sem as qua­li­fi­ca­ções e as com­pe­tên­cias ne­ces­sá­rias, obri­gado a adoptar um com­por­ta­mento ma­quinal para ser bem-su­ce­dido, tudo o que ele faz pa­rece de­sa­de­quado.

No meio destas pro­va­ções, Thi­erry par­tilha mo­mentos de riso e dança com a sua es­posa e o seu filho au­tista. O sub­sídio de de­sem­prego que re­cebe não é su­fi­ci­ente para pagar as des­pesas, em par­ti­cular as que estão re­la­ci­o­nadas com os cui­dados de que o seu filho ne­ces­sita. No banco, su­gerem-lhe que venda a casa ou que faça um se­guro de vida. Afec­tado pelo can­saço de uma vida árdua que não se re­solve, diz aos seus amigos sin­di­ca­listas que não quer par­ti­cipar num pro­cesso contra os an­tigos pa­trões, para não ter de re­viver a luta que travou, para pre­servar a sua sa­ni­dade mental. É um homem à beira do co­lapso, mas que não perde a fir­meza nem a cons­tância na des­graça.

Tomar par­tido

Quando Thi­erry de­cide pedir um pe­queno em­prés­timo, já con­se­guiu em­prego como se­gu­rança num su­per­mer­cado. Cada vez mais si­len­cioso e in­tro­ver­tido, en­car­regam-no de vi­giar, não só os cli­entes da grande su­per­fície, mas também as ope­ra­doras de caixa. O con­trolo que exerce sobre as ou­tras pes­soas co­loca-lhe di­lemas mo­rais que se vão avo­lu­mando até se in­ter­sec­tarem com o de­sen­lace trá­gico de um dos epi­só­dios. Al­gumas das pes­soas que co­metem pe­quenos furtos não têm di­nheiro para com­prar os pro­dutos. As co­legas das caixas são apa­nhadas por guar­darem cu­pões e co­lec­ci­o­narem pontos e é evi­dente que o fazem de­vido aos baixos sa­lá­rios, se­me­lhantes ao dele. Deste modo, ele é co­lo­cado pela en­ti­dade pa­tronal no papel de es­pião dos ou­tros tra­ba­lha­dores e par­ti­ci­pante no seu des­pe­di­mento. Os agentes do ca­pital que co­mandam este ne­gócio di­rigem-se a todos como se for­massem uma equipa sem de­si­gual­dades, mas co­locam tra­ba­lha­dores contra tra­ba­lha­dores, que­bram a sua so­li­da­ri­e­dade, mas­caram a sua ex­plo­ração. Thi­erry terá que es­co­lher se per­ma­nece as­so­ciado a este tra­ta­mento de­su­mano ou se re­gressa à pro­cura an­gus­tiada de em­prego.

A lei do mer­cado, re­a­li­zado por Stéphane Brizé, re­trata os pro­blemas do mundo la­boral con­tem­po­râneo sem ceder à re­tó­rica men­sa­geira. Tal como em Dois dias, uma noite (Deux jours, une nuit, 2014), é através das per­so­na­gens, das suas di­fi­cul­dades e as­pi­ra­ções, ale­grias e frus­tra­ções, que o filme edi­fica uma re­pre­sen­tação pre­cisa das re­la­ções eco­nó­micas e so­ciais no ca­pi­ta­lismo, agra­vadas com a ofen­siva ne­o­li­beral. Aplica-se a estas obras aquilo que Fri­e­drich En­gels es­creveu numa carta a Minna Kautsky em 1885. O ob­jecto do seu co­men­tário era o cha­mado ro­mance so­cial que, se­gundo ele, «de­sem­penha ple­na­mente a sua missão se, através de um re­trato fiel das con­di­ções reais, dis­sipar as ilu­sões con­ven­ci­o­nais do­mi­nantes que lhes dizem res­peito, sa­cudir o op­ti­mismo do mundo bur­guês, e ine­vi­ta­vel­mente in­cutir a dú­vida quanto à va­li­dade eterna da­quilo que existe, sem que ele pró­prio ofe­reça uma so­lução di­recta do pro­blema en­vol­vido, até sem que por vezes tome os­ten­si­va­mente par­tido». Tomar par­tido seria, no trilho das pa­la­vras de En­gels, um efeito da in­ter­pe­lação pro­vo­cada por um filme po­de­roso como este. Assim seja.

 



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