O escândalo

Correia da Fonseca

A semana começou da melhor maneira para a comunicação social em geral e de um modo mais evidente para a televisão, essa privilegiada portadora das notícias mais impactantes: graças ao longo trabalho de investigação de uma ampla equipa de jornalistas, foi denunciada publicamente a existência de uma empresa instalada no Panamá, uma tal Mossack Fonseca, cuja especialidade é o «offshore». Para o comum das gentes, a palavra «offshore» não corresponde a nada de muito concreto e até pode supor-se que não se trata de nada de muito feio pois que, como por vezes é recordado de passagem, também na ilha da Madeira há um «offshore» e pouco ou nada se fala disso. Contudo, há a generalizada percepção de que os dinheiros sempre ou quase sempre avultados que se acolhem aos «offshores» têm problemas de higiene, isto é, serão dinheiros sujos, talvez provenientes dos obviamente ilegais tráficos de armas ou de drogas quando não de seres humanos. No mínimo e numa versão optimista, serão dinheiros que embolsados de forma discreta se dispensaram de pagar os impostos a que estavam obrigados, isto é, que consubstanciaram a peculiar forma de roubo que é o roubo ao Estado e a especial modalidade de traição que é a traição aos concidadãos. É claro que se trata sempre de montantes de impressionante grandeza, pois estes movimentos de capitais não foram inventados para o trânsito de patacos e para benefício das poupanças da arraia-miúda. Também neste caso como em muitos outros, é reservado o direito de admissão pela razão do costume: porque gente fina é outra coisa. De onde outros caminhos e outras vantagens.

Uma outra dimensão

Ainda assim, e não obstante o estatuto social não escrito mas efectivo que permite a alguns a prática de actos e a adopção de métodos não consentidos à generalidade das gentes, o recurso aos «offshores» é condenado pela moral oficial e oficiosa, a eliminação dos «offshores» é reclamada de tempos a tempos, a sua ilegalidade formal e ética é consensualmente reconhecida. Entende-se assim que a denúncia da actividade da Mossack Fonseca e do gigantesco acervo de capitais que por seu intermédio se terão acolhido ao recato de «offshores», tenha suscitado escândalo e é suposto que indignações, efeitos que têm a consequência paralela de constituírem um verdadeiro regalo para a generalidade da comunicação social. Mas há um dado surgido logo na primeira vaga de informações que confere à revelação e denúncia do escândalo um sabor acrescido que faz decerto a delícia dos paladares já adequadamente mobilizados para o degustarem: como aliás era previsível, o nome de Vladimir Putin figura na primeira vaga de utilizadores de «offshores» agora revelada. Talvez nem seja demais anotar que sem essa presença nem a revelação do escândalo teria valido tanto a pena. É certo que não se tratará do nome de Putin propriamente dito, mas sim de pessoas «que lhe são próximas», mas é claro que numa situação destas ninguém se vai preocupar com minúsculas diferenças. Aliás também já foi referido o nome de um ex ou actual presidente da China, e é muito de espantar que ainda não tenha sido citado o nome de Fidel. De entre figuras políticas do Ocidente, até ao momento em que este texto foi escrito só foi referido o pai de Cameron, o actual PM britânico, mas o senhor já faleceu e é preciso deixar os defuntos em descanso. Porém, no meio de tudo isto que obviamente não é mínimo, pode ocorrer que surjam vozes que, impertinentes, queiram lembrar que um outro escândalo, de uma outra dimensão, sobreleva o da existência dos «offshores» na verdade abomináveis: que as raízes da imoralidade configurada pela própria existência dos «offshores» são também as raízes de um modelo sócio-económico que exige que o proveito de alguns se alimente da exploração do trabalho de muitos. Os explorados conhecem-lhe o nome, os que dele se nutrem inventam mil e uma formas de desconversar. É um gigantesco escândalo que percorre o mundo como uma infecção. Os que o reconhecem designam-no pelo seu nome: capitalismo.




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