O leite derramado
Nos últimos dias, por iniciativa do PCP na Assembleia da República, e pela voz do Secretário-geral, foi conhecida a prática do governo da Galiza de promover acções de inspecção exaustiva sobre leite português que entra naquela região do Estado espanhol, tendo como consequência quer o atraso na entrega de encomendas previamente acordadas, quer mesmo a devolução de leite a Portugal pelo incumprimento de normas em vigor.
Sobre esta matéria, importará assinalar quatro aspectos, recordando questões consabidas e chamando a atenção para todas as ilações que daqui há a extrair.
Comecemos por lembrar que na origem das dramáticas dificuldades que os produtores de leite dos países periféricos, e em particular os produtores portugueses, estão a atravessar, se encontra a decisão tomada pelo conjunto dos governos europeus, no quadro da União Europeia, de desmantelamento das quotas de produção de leite, instrumento de regulação essencial para assegurar que, num mercado aberto como é o da UE, os países com melhores condições edafo-climáticas (de solos e de clima) e portanto com condições para produzir mais e a melhores preços, não ocupavam todo o mercado, provocando o fim das produções locais.
Decisão que, no nosso País, apenas o PCP contestou desde a primeira hora e de forma coerente, por serem evidentes as consequências de tal processo. Consequências que se confirmaram na sua plenitude, no período da chamada aterragem suave, entre 2011 e 2015, em que o aumento da quota em cinco por cento, por exemplo, em Itália, era maior que toda a produção anual portuguesa, levando ao abaixamento dos preços, à redução do rendimento dos produtores e ao encerramento de milhares de explorações.
Importa referir, por outro lado, que aquilo que o Governo e as autoridades galegas estão hoje a fazer se encontra protegido pela lei do Estado espanhol, mas também pelas regras da União Europeia. Na verdade, quando o PCP defende o controlo das importações de produtos que aqui podem ser e são produzidos, em quantidade e qualidade para o abastecimento do nosso mercado, não faltam as vozes que dizem que não é possível, que a União Europeia não permite.
Aí está a prova de que, mesmo no quadro das regras, que contestamos, de ingerência e de limitação da nossa soberania, é possível tomar medidas para acautelar a defesa da produção nacional.
Isto porque, terceiro aspecto, do que se trata afinal nos corredores da União Europeia, nesta matéria e em todos os aspectos da nossa vida colectiva, é da protecção dos interesses económicos dos poderosos, sejam eles a toda poderosa banca privada e o capital financeiro, seja os grandes interesses dos países produtores de leite, de vegetais ou de fruta. E assim, o mercado livre, que é tão obsessivamente anunciado, não significa mais do que a liberdade dos que têm condições naturais, dimensão, especialização e apoios públicos para assegurarem a dita competitividade, de impor os seus produtos aos países a quem, previamente, destruíram a capacidade produtiva.
Último aspecto. O que aqui está em causa é perceber se, em qualquer circunstância, os governos nacionais se colocam ao lado da população portuguesa, dos seus interesses, e do País, ou se se colocam de cócoras perante os interesses dos grandes países produtores do centro e Norte da Europa, por um lado, e da grande distribuição nacional, por outro.
Por muito que nos custe, as autoridades galegas, ao decidir um controlo mais apertado do leite que circula na Galiza, estão a defender os seus interesses específicos, podendo, para além do mais invocar a defesa da saúde pública, uma vez que é de um alimento altamente perecível que se trata. O mesmo fazem as autoridades francesas, com impactos a médio prazo na nossa produção, ao promoverem acordos entre a produção, a indústria e a distribuição em que estes se comprometem a comprar leite francês.
Em sentido contrário, o anterior governo PSD/CDS, depois de ter dado o seu acordo à Reforma da PAC, com a confirmação do fim das quotas leiteiras, nada fez para defender o interesse nacional.
A questão está em saber se o actual Governo está disponível para romper com uma atitude subserviente face à UE e para accionar todos os mecanismos para a defesa dos ainda cerca de 6000 produtores nacionais de leite, sector onde ainda somos auto-suficientes.