Nos 100 anos de Vergílio Ferreira

Derivas estéticas e especulação existencial

Domingos Lobo

Cumpriram-se, a 28 de Janeiro, 100 anos sobre o nascimento, na aldeia de Melo, concelho de Gouveia, de Vergílio Ferreira, um dos nomes cimeiros da nossa Literatura no século XX. Nome incontornável da nossa cultura, quer pela intervenção pedagógica, enquanto professor do Ensino Secundário, quer pelos ensaios, nos quais as suas especulações e influências filosóficas (Jean-Paul Sartre, André Malraux, Albert Camus, Hegel, Kierkegaard, Nietzsche) se irão revelar, neles embrenhando as preocupações existenciais que a sua obra ficcional, a partir da ruptura que o romance Mudança nela opera, amplamente inscrevem: os enigmas que envolvem a nossa condição, o eu e o outro, os sentidos da vida e da morte, o tempo e a sua volatilidade, as interrogações sobre a existência de Deus. Obra que, em dois períodos distintos de gestação desse poderoso lastro diegético, vem deixar marcas e influências, pela singular abordagem que o seu verbo e a clareza da exposição imprimem ao fenómeno literário, junto de jovens escritores, mormente daqueles que pelos anos 1960 começavam a trilhar os caminhos do discurso literário, quer ainda pelas derivantes estéticas, sociais e humanistas que essa obra expressa.

«O único valor possível, ou seja, o único mito que não se sabe o que é, é o próprio homem», escreverá Vergílio Ferreira em Conta-Corrente. Será a busca para entender e descodificar essa absurdo que o homem é, essa contraditória imanência, que constituirá o cerne especulativo da sua obra posterior a Mudança.

Com um início literário inscrito na corrente literária mais profícua do século XX, o neo-realismo, com títulos como O Caminho Fica Longe (1939), seu romance inaugural, Onde Tudo Foi Morrendo (1942) e, sobretudo, Vagão J (1946), no qual a palavra de Vergílio Ferreira acompanha os dramas sociais do seu tempo, comungando da necessidade de, também no plano do discurso ficcional, a Literatura gerar um contributo para a luta, visando denunciar as chocantes desigualdades sociais, a partir da realidade do interior serrano e a opressão política do país salazarento, reclamando o devir de uma sociedade nova e justa. Cedo, no entanto, o autor de Aparição rompe com esse projecto inicial, investindo nas novas tendências estético/filosóficas surgidas com o lamber de feridas do pós-guerra. Sobre essas inferências textuais e as suas derivantes representativas, diz-nos Eduardo Lourenço: considere-se Vergílio Ferreira numa perspectiva ideológica, como autor de ruptura e tentativa de superação e reformulação do ideário neo-realista; numa perspectiva metafísica, como romancista do existencial no sentido que ao termo foi dado pela temática chamada existencialismo; e, finalmente, numa perspectiva simbólica, como romancista de uma espécie de niilismo criador ou, talvez melhor, do humanismo trágico ou tragédia humanista.

Este sentido «trágico da vida» – posição inversa ao inicial investimento crítico sobre o real, dado que menos interventiva face às problemáticas do social e do político, quando a sua relação com o dialéctico histórico e conjuntural se altera e, em função dessa alteridade, nos aparece imbuído de um agónico pessimismo –, vamos encontrá-lo em romances como Uma Esplanada Sobre o Mar (1987), Prémio APE, e Em Nome da Terra (1990), nos quais a angústia existencial, o efémero, o absurdo da vida, o ser ou não ser literário (tema a que retornará de forma mais impressiva no 3.º volume de Conta-Corrente), as reflexões sobre a beleza e o transitório (da arte, das emoções, da passagem do tempo), se determinam eixos centrais da diegese. Estes percursos interiores estão ainda presentes, com outra agudeza preceptiva, no romance Na Tua Face (1993) no qual as qualidades discursivas de Vergílio Ferreira e o seu posicionamento filosófico melhor se explanam e revelam, no modo ácido e desolado de investir sobre a inquirição do ser e do nada, na reflexão sobre o fragmentário e o avulso da vida e da escrita: a passagem do tempo e as suas marcas, o envelhecimento que destrói a beleza e a sedução, (essa necessidade de fixar ambas, de as tornar perenes através da escrita, mesmo quando a função se lhe apraz inútil), o céptico olhar sobre o tempo que nos coube viver, a privação do transcendente, o justo e o injusto, os equívocos do bem e do mal no sentido camusiano, a fragilidade do homem perante o cosmos e seus mistérios; o Eu que constantemente se põe em causa e se interroga: eis as coordenadas que se inscrevem, quase sempre num modo didáctico de exposição, nos livros do autor de Alegria Breve. Ou seja, a substância metafísica que lhe convoca o acto de escrever: a suprema ambição de ordenar o caos, mesmo quando o autor tem plena consciência dessa imponderabilidade.

Diz-nos Vergílio Ferreira, numa passagem de Pensar (1992): Escrevo para criar um espaço habitável da minha necessidade, do que me oprime, do que é difícil e excessivo. (...) Escrevo porque o erro, a degradação e a injustiça não devem ter razão. (...) Escrevo para tornar visível o mistério das coisas. Escrevo para ser. Escrevo sem razão. É este sem razão que opõe o universo vergíliano ao dos seus companheiros da 1.ª geração neo-realista, que ambicionavam, no clamor da utopia, que o impossível se cumprisse: escreviam porque tinham causas; escreviam porque sabiam útil esse acto; porque perseguiam substantivos ideológicos e estéticos que os levavam a intervir desse modo – escreviam para mudar a Vida.

Com Mudança, o autor transfere para outros universos temáticos, e linguísticos (o uso e afirmação da língua define especificidades de estar, de entender o mundo e sobre ele intervir), a sua análise sobre o real – esse desejo, afirmado por Vergílio Ferreira, de tornar possível a realidade como se, para tanto, bastassem apenas as palavras e a justeza da sua usança. Embora na sua obra literária e ensaística permaneçam marcas de preocupações sociais, de combate à usura, de intrínseco sentido humanista, de busca, no plano moral e ético, de uma melhor justiça, embora sem a força e o empenhamento cívico dos seus textos do período neo-realista, mormente no romance exemplar que é Vagão J, no qual a sua singular análise do mundo rural serrano estava plasmada com vigor e sageza. Em Manhã Submersa ainda adivinhamos esses eixos temáticos (a análise do meio, a descrição realista das condições de vida e de trabalho no meio rural, a estratificação classista, a influência determinante da Igreja nos comportamentos, o seu poder ideológico e referencial; a ignorância; o desejo de fuga, de tornar possível a realidade), coordenadas que o escritor irá gradualmente anulando nos seus textos posteriores, afastando da sua escrita essa matriz inicial, para se debruçar sobre os universos conceptuais do homem contemporâneo, a sua carga libidinal, a angústia, mesmo quando imbuída de humor, de estarmos sós e perplexos perante a vastidão do mundo, e assumindo esse questionamento, esse inconformismo existencial, essa busca da dimensão integral do homem; o périplo de uma vida à procura da palavra. Dos seus sentidos. Da sua porosidade.



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