Da cultura e do ensino – tanto para fazer!

Manuel Pires da Rocha

Diz-se cultura e há quem assuma o ar grave das coisas sérias. Felizmente que há quem lhe encontre caminho feliz de descoberta e de partilha! Outros há que não lhe encontram nada que se veja, e houve até um ministro de Hitler que, quando ouvia falar de cultura, levava a mão à pistola. Entendimentos à parte, do mundo que se lhe encontra, Cultura é elemento central do exercício dos humanos, desde a consciência de si à tarefa de mexer na Humanidade.

Por isso é que a História inventou a Política Cultural, poderoso instrumento de classe capaz de promover ou de dinamitar o impulso de emancipação dos povos. Cultura conformada é assunto de foguetório, sala privada para poucos, no lado contrário aos lugares da Vida: o terreiro, a biblioteca, a sala de porta escancarada, os lugares todos de observar, reflectir, transformar. Cultura nunca é departamento – é placa giratória, corpo em movimento, razão por que a chamada cultura artística nunca é independente, por exemplo, da investigação científica e do conhecimento científico que assumiu, desde o século XIX, uma dimensão cultural central na vida das sociedades, claramente muito além da dimensão estritamente económica que o capitalismo neoliberal lhe vem atribuindo. Cultura que justifique inscrição é a que reivindica – e luta, e realiza – aquilo a que Bento de Jesus Caraça chamava a cultura integral do indivíduo, isto é, ferramenta de realização individual e colectiva.

É nesta preocupação – mais, neste plano de acção! – que se integra o ensino artístico, cujo ramo «especializado» tem vindo a ser notícia pelas piores razões. Durante vários meses o financiamento comunitário não chegou às escolas não-públicas do ensino artístico especializado, inviabilizando o pagamento de salários aos professores. A dívida herdada do governo PSD/CDS encontra-se quase saldada, mas é um bom exemplo de desvalorização do ensino artístico enquanto ferramenta de acesso à Cultura, a juntar-se ao menosprezo por estruturas associativas como as Bandas Filarmónicas, entre muitas outras.

A Constituição da República é abundante nas referências à cultura, desde logo na definição do modelo de Estado, o tal que visa a realização da democracia económica, social e cultural no todo e em suas partes. Cultura é gesto de dia-a-dia, mas também soberania, política externa, bem-estar, património, Natureza. Por isso se reivindica o alargamento da rede pública do ensino artístico especializado; por isso se defende um programa de educação artística generalista e multidisciplinar que estimule o conhecimento e o exercício das artes enquanto porta de acesso à Cultura.

Durante toda a desgovernação PSD/CDS a Cultura nem sequer foi assunto ministerial, esmolada nos 0,1 por cento que mancham os propósitos, por mais modestos que sejam, de qualquer Orçamento do Estado digno desse nome. Pelo seu lado, a cultura científica sofreu horrores às mãos do lápis azul de FCT, dos cortes orçamentais, das opções mercantilistas capazes de cercear toda a criatividade, todo o desenvolvimento, toda a fruição. O «mercado» reforçou o seu papel (embalado que vinha já dos governos de Sócrates): teatro sim, se o público o pagar; televisão sim, se a publicidade a suportar; ciência sim, se a empresa a quiser.

E o Estado? Dele se disse que deveria ser mínimo, quase apenas o porteiro dos lugares do lucro abundante à custa do empobrecimento material e cultural de cada vez mais cidadãos. Resumiu-se a Cultura a coisa de jograis e breves alegrias. Diz-se que, certa vez, a propósito de um qualquer pedido de apoio financeiro, Salazar atirou a António Ferro: «vem você pedir-me para os alegres, quando eu não tenho nem para os tristes…». Tal mestre tais aprendizes – fica assim justificada a dimensão da parcela do OE para a Cultura do anterior governo, os tais 0,1 por cento da nossa vergonha. Cultura tem vindo a ser coisa de «alegres» da mesma categoria dos feriados nacionais e de todos os assomos de civilização que se acham fora das rotas de produção de bens claramente comercializáveis.

Há tanto trabalho para fazer! Trata-se, afinal, da luta pela construção de um país em que a Cultura possa vir a ser um bem de primeira necessidade.

 

(Baseado numa intervenção feita em Évora no quadro da candidatura de Edgar Silva)



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