Edith Piaf
Três títulos de canção – «Je ne regrette rien», «La vie en rose», e «Milord» – é quanto basta para que o leitor destas linhas tenha já acendido na memória outras tantas frases musicais. É Edith Piaf a levantar a voz no palco das nossas vidas, nos dias em que se comemoram os 100 anos do seu nascimento.
Antes de tudo o seu canto – timbre, expressividade, plasticidade –, traço sonoro irrepetível, intemporal semeador de encantamento. Só depois a personagem, a mulher transformada em acontecimento, ponto de partida para o relato de uma vida vivida mas também para o relato fantasioso, essa necessidade ancestral que alguns têm de converter os mortais mais «desiguais» em mitos. Em ambas as versões, a história de uma vida curta mas densa – da miséria à Rive Droite, das ruas de Paris ao Olympia ou ao Carnegie Hall.
Nestes dias equivocados, em que Marine Le Pen mostra as garras em nome da «França para os franceses», calhou a Edith Piaf, símbolo maior da mais francesa das Franças, herdar os genes de um bisavô marroquino e de avó italiana, não se sabendo se este dado será susceptível de desfrancesar a cantora. Indiferente às criminosas exigências de certificação de origem com que o imperialismo justifica velhas e novas políticas segregacionistas, Édith Gassion nasceu em Paris, corria a Primeira Grande Guerra. Filha de pai saltimbanco e mãe cantora de rua, a versão romanceada da sua biografia fá-la nascer numas escadas do 20.º Bairro, a 19 de Dezembro de 1915, mas o facto de ter nascido numa maternidade da Rue de la Chine, no mesmo bairro, nada retira a uma infância de abandono e miséria. Começou a cantar na rua, criança ainda, primeiro acompanhando o pai depois sozinha. Aos 18 anos já tinha muitas amarguras para contar (e cantar), a maior das quais a morte da sua filha Marcelle. Recordará mais tarde esse tempo doloroso e a necessidade de, sobrevivendo ao desgosto, prosseguir o seu ofício de cantora de prostíbulo e da rua.
Só a qualidade do canto é uma constante naquela vida marcada pela tragédia. Mas no Outono de 1936, numa esquina de Paris, o empresário Louis Leplée agrada-se do seu cantar e contrata Edith, a partir de então Edith Piaf. É o início da caminhada de Piaf na conquista dos públicos, de compositores e radialistas; um canto poderoso nos palcos de tábuas do Bobino, do L'Européen, do ABC e no palco sonoro dos discos.
No início da ocupação nazi (1940) Edith está em Paris, cidade transformada em troféu «glamouroso» a exigir a manutenção de uma certa atmosfera «parisiense». As salas de espectáculo não são encerradas, continuando a apresentar variedades para entretenimento do público militar alemão, mas a ordem fascista faz-se sentir: à entrada do Casino de Paris é afixado o letreiro «INTERDITO A CÃES E A JUDEUS». Na Paris ocupada faltam os artistas que recusam qualquer compromisso com a ocupação e o colaboracionismo. Um número significativo de artistas resistentes fixa-se em Londres, onde viria a nascer a mais célebre canção da Resistência, “Le Chant des Partisans”; outros, como Maurice Chevalier, Charles Trénet e a própria Edith Piaf, decidem permanecer em Paris, fosse em nome da pouco dignificante divisa «a minha política é o trabalho» fosse talvez, no caso particular de Edith Piaf, o enfrentar de uma adversidade mais, a suscitar a resposta sobrevivente por si tantas vezes experimentada. Seja como for, o Comité de Depuração resultante da Libertação, a quem competirá saldar contas com o passado, liberta Edith Piaf de responsabilidades colaboracionistas, e a sua carreira artística prossegue a trajectória de ascensão permanente.
Viria a morrer em Outubro de 1962, com 47 anos. Robert Belleret, no seu livro «Piaf, un mythe français», afirmou que Edith talvez gostasse de ser recordada «como uma artista impecável em palco. Chegava ali coisa pouca, abria a boca e, de um golpe, a sala estava conquistada. Era aquilo de que ela gostava. Gostava também do jogo da sedução, ao ponto de inventar amantes no final da sua vida. É talvez um pouco patético, mas nesta sua atitude parece querer dizer: “mesmo com este aspecto de velho destroço continuo a seduzir, ainda que isso vos chateie”».
Sepultada no cemitério de Père Lachaise, acompanhada por 40 mil admiradores, a Igreja Católica recusa-lhe o funeral religioso e justifica-se no Osservatore Romano: Piaf «viveu em pecado público», constituindo-se «um ídolo da felicidade pré-fabricada». Sabe-se, porém, que o canto de Edith Piaf viria a entrar no mais subido dos Céus – o desta Terra, onde se fez imortal vibrando nas vidas dos seus semelhantes.