«Confesso que vivi!»
Se sou amado,
quanto mais amado
mais correspondo ao amor.
Se sou esquecido,
devo esquecer também,
pois amor é feito espelho:
tem que ter reflexo.
Pablo Neruda
Surgiu-me este poema depois de, em noite afável e camarada, ter participado numa homenagem a Pablo Neruda, na sede concelhia do PCP, em Almada. E ter-me, o poema, surgido faz todo o sentido e por várias razões: nessa noite cantou-se, ouviu-se muita música chilena e recordaram-se factos, posturas, episódios.
Factos historicamente comprováveis e nem de todos conhecidos; posturas menos apregoadas por haver mais interesse em referir outras, menos importantes para quem pensa no futuro, de importância maior para quem quis (e quer...) tapar o sol com a peneira; episódios parcamente divulgados, o que se percebe. A saber: quem, defendendo uma ideologia e uma prática de opressão, como a que se vivia em Portugal na altura, se atreveria a referir Neruda e Jorge Amado como apoiantes da libertação do prisioneiro do fascismo Álvaro Cunhal?
Um desses episódios foi o encontro entre Neruda e Jorge Amado, na casa do poeta chileno, em Isla Negra. Os dois escritores falaram de Portugal e do que, em Portugal, mais os tocava na altura: a prisão de Álvaro Cunhal, corria a conversa e a situação pelo ano de 1954. Em prosa e poesia escreveram dois belos textos que engrossaram a campanha para a libertação do “mais bravo dos filhos desse povo heróico”, nas palavras do autor de “Capitães da Areia”.
Jorge Amado:
«(Álvaro Cunhal) contou-me coisas de espantar, com sua voz ora doce, grávida de ternura, ora violenta de cólera quando falava da fome dos trabalhadores, da opressão salazarista sobre o povo, da opressão imperialista sobre a sua pátria de primavera e mar.»
A estória foi contada na noite da homenagem ao poeta que Almada não se cansa de homenagear, dando o seu nome a lugares, erguendo-lhe um memorial ou lembrando-o numa noite de poemas, cantigas, mojitos, fraternidade e camaradagem.
«Amor (…) tem que ter reflexo». Teve. Na admiração, no obrigado, na retribuição de palavras sinceras àquelas outras que Neruda nos deu, imortais, companheiras, belas e solidárias. Como estas, no final do poema que escreveu, nesse dia memorável do encontro com Jorge Amado:
«Navega, Portugal, a hora
chegou. Levanta
tua estátua de proa
e entre as ilhas e os homens volve
a ser caminho.
A esta idade agrega
tua luz, volta a ser lâmpada.
Aprenderás de novo a ser estrela»
Éramos umas dezenas de pessoas e outros tantos sorrisos, e outros tantos olhares brilhantes. E outros tantos ouvidos atentos. Entre eles, eu, olhando, ouvindo, cantando e sorrindo, porque estava entre gente ali reunida pela poesia, pela História, pelo sonho.
«Pelo sonho é que vamos», escreveu Sebastião da Gama, poeta que apenas sonhava, como José Régio, poetando, apenas negava. Estávamos ali com palavras, em prosa e verso, que falavam (e falam! E hão-de, sempre falar!) de um sonho possível. Não, Sebastião, desculpa. Não vamos pelo sonho «comovidos e mudos»: clamamos! Não José Régio, desculpa. Afirmas «não vou por aí» mas antecipas «não sei para onde vou». Nós estávamos ali com as palavras de um sonho realizável genialmente escritas por Neruda. Jorge Amado vem por acréscimo e ainda bem, mas a noite era de um Pablo que, vendo-se ao espelho, disse: «confesso que vivi!», vivendo o sonho mas lutando por ele.
Tudo isto vem a propósito de uma noite de tributo a Pablo Neruda, num Centro de Trabalho do PCP. Olhei em volta, reparei numa plateia na qual os jovens tinham presença acentuada e predominante, nas tarefas de contentar pedidos no balcão, fazer coro nas cantigas, emprestar a voz na leitura de poemas.
Ali, como em outros lugares, a começar pelo grupo parlamentar na Assembleia da República, via-se bem que o PCP é um partido de «velhos» decrépitos, decadentes, ultrapassados. Velho serei eu e mal o sinto. Como senti-lo vendo-me rodeado de gente nova, gente boa, bonita e militante?
E foi assim, sorrindo-me, que saí, no fim da festa, mais aconchegado. Não resisti e dei um piscar de olhos, agradecido, a Pablo Neruda.