Dívida, dúvidas, certezas
Não passaram ainda dois meses desde que o povo grego rejeitou de forma clara, em referendo, os chamados memorandos da troika, a política que consubstanciam, a própria troika – a UE, o FMI e aqueles que na Grécia foram os seus homens de mão nos últimos anos.
Não passaram ainda dois meses e já um terceiro memorando foi assinado pelo governo Syriza-Anel. Um terceiro memorando que consubstancia a mesma política, que representa a mesma chantagem, e para o qual se antevêem os mesmos resultados dos anteriores. Senão piores, desde logo porque pior é também o ponto de partida. Um terceiro memorando aprovado no parlamento grego pelas mesmas forças políticas que aprovaram os dois anteriores, às quais se juntou desta feita a maior bancada, a que apoia o governo Syriza-Anel (com excepção de pouco menos de três dezenas de deputados do Syriza, que entretanto romperam com o partido de Tsipras para formar uma nova força política antimemorando).
Não passaram ainda dois meses e já a estratosférica dívida grega voltou a disparar com o novo «empréstimo» da troika, que já está a servir para fazer face a amortizações e juros de empréstimos anteriores.
E no entanto passaram pouco mais de dois meses desde que, a 19 de Junho, a designada Comissão de Auditoria e Verdade sobre a Dívida Grega, criada e dinamizada pelo parlamento grego, publicou um relatório preliminar no qual se analisava, entre outros aspectos, a origem e o processo da dívida pública grega, concluindo-se pela sua ilegitimidade, odiosidade, ilegalidade e insustentabilidade, avançando-se mesmo com fundamentos jurídicos para o seu repúdio e suspensão.
Olhando ao conteúdo do relatório dir-se-ia serem dois parlamentos distintos – o que, por um lado, produziu tão arrojado arrazoado e o que, por outro lado, escassos dois meses transcorridos, aprovou um terceiro programa da troika. Sem repúdio de dívida. Perante o repúdio popular de todos quantos viram traídas fundadas esperanças de ruptura e mudança. A dívida, essa, só não se mantém intocável porque entretanto aumentou substancialmente.
O relatório contém indiscutíveis motivos de interesse. Vejamos dois exemplos, entre outros possíveis.
No primeiro capítulo, analisa-se o crescimento da dívida pública grega desde os anos 80. Ali se conclui que o aumento da dívida não se ficou a dever a despesa pública excessiva. Pelo contrário, esta permaneceu mais baixa do que a de diversos outros países da Zona Euro. Ali se refere o pagamento de taxas de juro extremamente altas aos credores, gastos militares injustificados e excessivos, perda de receita fiscal devido à fuga de capitais. Ali se refere que a entrada no euro levou a um aumento drástico da dívida privada na Grécia, à qual ficaram expostos os maiores bancos privados europeus, bem como os bancos gregos. Referência merecem também os efeitos da recapitalização dos bancos privados com recursos públicos no disparar da dívida soberana.
No segundo capítulo, avalia-se em pormenor o primeiro acordo de empréstimo da UE, em 2010. Recorde-se que neste primeiro empréstimo o mecanismo consistiu num conjunto de empréstimos bilaterais por parte dos diferentes estados-membros da UE. Vale a pena recuar a esse tempo, quando por cá alguns diziam com denodo ser «tempo de ajudar a Grécia». Vale a pena recuar até ao voto na Assembleia da República, que juntou no apoio ao empréstimo os votos dos partidos da troika, PS, PSD e CDS, e também o BE. Isto perante a denúncia do PCP de que não estávamos perante nenhuma ajuda ao povo grego mas sim aos grandes bancos europeus expostos à dívida grega, às custas do povo grego – razão de sobra para o consequente voto contra. Ora, que veio agora dizer o relatório? Nada mais nada menos do que o seguinte: «O empréstimo teve como principal objectivo salvar os bancos privados gregos e europeus e permitir a esses bancos reduzir a sua exposição às obrigações emitidas pelo governo grego».
O tempo e a luta do povo grego ditarão qual o destino efectivo deste terceiro memorando. Ditarão, bem assim, qual o destino efectivo do relatório da auditoria à dívida grega e das suas conclusões. Mas o que o tempo não apagará, na Grécia como em Portugal, em nenhuma circunstância, é a evidência de que a dívida se constitui simultaneamente como consequência e causa de relações de dominação económica e de subordinação política que urge romper. E de que o euro foi e é um elemento crucial no entretecer dessas relações.