Sardinhas, quotas e gente
Ao longo do ano em curso, por várias vezes a televisão nos informou de que pescadores perderam a vida no mar quando, precisamente, no mar se obstinavam em ganhar a vida, como é de uso dizer. Aliás, um dia destes a mesmíssima televisão pode ter surpreendido os mais distraídos ao informar que já ascende a cerca de trezentos o número de trabalhadores que este ano, que só vai a não muito mais de meio, já morreu no seu posto, isto é, a trabalhar. Entre eles, terão decerto sido contados os pescadores, e perante as notícias das suas mortes não terá faltado talvez quem os tenha censurado pela imprudência de saírem para o mar quando as condições de tempo desaconselhavam a imprudência. A questão, porém, é que o risco de vida é uma espécie de cláusula implícita na profissão do pescador, e o embarque num frágil navio de pesca é, pelo menos em muitos dias do ano, bem mais perigoso que a entrada num bom carro que transportará o gestor de grande empresa ao seu gabinete climatizado. De onde, entre outras razões, decorrerá um sentimento de indignação que tome o cidadão ao saber, graças ao seu televisor, que os cerca de dois mil trabalhadores portugueses da área da pesca da sardinha ficaram agora em situação de efectivo desemprego porque, em obediência ao que foi decidiu em negociações com a Espanha, pelos vistos levianas e descuidadas quanto aos interesses de quem trabalha, foi encerrado mais cedo do que as condições concretas deveriam aconselhar o período da pesca da sardinha. Em princípio para que o defeso garanta a sobrevivência da espécie. Na aparente indiferença pela sobrevivência das condições de vida de quem trabalha.
Uma conta simples
Tanto quanto o telespectador sabe, a quota de pesca agora esgotada, com a consequente implementação do defeso, foi negociada com a Espanha pela senhora ministra Assunção Cristas que, por sinal, ganhou em certos meios a reputação de ser do melhor que há no género, tanto e de tal modo que até já se fala dela para uma eventual substituição do dr. Portas quando de um naturalmente irrevogável abandono do actual líder do CDS-PP. Esta excelente reputação da doutora Cristas é curiosa e passa decerto pelo esquecimento de uma barbaridade de que foi fautora, a chamada Lei do Arrendamento Urbano, aparentemente esquecida hoje, que atirou milhares de inquilinos financeiramente frágeis para a penúria e o permanente desespero. O carácter escandaloso desta lei é tal que, quando publicada, logo o PS veio garantir que a anularia mal fosse governo, promessa que aliás não voltou a ser repetida, pelo que é de recear por ela. Pois é desta mesma excelente senhora a responsabilidade de, perante a Espanha, ter aceitado uma quota da pesca de sardinhas que agora se revela claramente incompatível com a manutenção de condições de vida minimamente aceitáveis para uns milhares de cidadãos portugueses. Como atrás se disse, são eles cerca de dois milhares, mas convém fazer contas sobre este número estimando em quatro, numa avaliação aliás modesta, o número de portugueses que integram cada agregado familiar atingido pela proibição desta pesca, assim se chegando ao número de oito mil portugueses feridos pela actuação da senhora ministra de quem decerto os negociadores espanhóis terão ficado com excelente impressão. Cabe notar que a história das relações luso-espanholas em matéria de pescas tem vindo a ser, desde há muito tempo, uma história penosa para os interesses portugueses, complementar da tristíssima e inesquecível iniciativa cavaquista de destruição quase radical da nossa frota pesqueira. Assim, neste subsector a ministra surge agora como uma continuadora do então senhor PM, o que talvez considere honroso e lisonjeiro. Nos lares dos pescadores agora sem trabalho a opinião será decerto outra.