Ironia, mordacidade, reinvenção
Fernando Assis Pacheco, quando autografava os seus livros – não sei se todos, ou sempre – tinha por hábito levantar-se, mesmo quando esse gesto já lhe seria difícil tarefa. Cumprimentava, com esse movimento, o promitente leitor. O Leitor como elemento fulcral, receptor privilegiado, do eco das palavras que o autor, com maior ou menor capacidade, urdiu. Sem essa inferência, essa percepção cognitiva dos signos efabulatórios, a hermenêutica das ideias e dos sentidos que as palavras transferem para o outro, o escritor perde ressonância; nem se realizará esse instante irrepetível de empatia que a arte de escreviver, de que nos fala Urbano Tavares Rodrigues, persegue. E existiriam as palavras nos seus mais amplos significados, enquanto matéria de identidade colectiva, modo superior de atravessar a aridez do quotidiano, sem a Literatura? É de crer que não.
É redutor pensar-se que à Literatura cabe apenas (como Graham Green imaginava) o poder de representação de uma determinada realidade, ou como, dialecticamente, o neo-realismo definiu, da materialização da realidade, da denúncia das injustiças, extremando as suas componentes, surgiria a indignação colectiva e, a partir dela, o lastro para revoluções futuras. Dessa forma a Literatura contribuiria, agente subliminar, para a transformação da realidade e, consequentemente, do homem. A Literatura teria, desse modo, uma função política e socialmente útil. Hoje, alguns autores entendem que à Literatura caberá o ácido demolidor e crítico, o acinte verbal que permite derrubar o véu espesso da farsa, o pífio retórico com que os poderes teimam em moldar o real. Estaremos, por ventura, a crer nos escaparates que se exibem entre a tronchuda e o rabanete, e na forma como a direita trata as coisas da Cultura, próximos das consignas do ditador Papa-Doc o qual, ao criticar, com crudelíssimo cinismo, o livro de Green Os Comediantes, afirmou: «A literatura não salva nada, não serve nada, a literatura é».
Mesmo não fazendo as bélicas, convencionais revoluções, a Literatura, a que conta, deixa alicerce suficiente, consciência e substância crítica para subversivas incursões sobre o real. É por isso que a Literatura é hoje um território apetecível para os que tentam, através dela, servindo-se da subserviente mediocridade de alguns escribas, impor domínios de sujeição e de modos de pensar únicos e autocráticos. Da Literatura, dessa arte de inquirição sobre o homem e suas perplexidades, precisamos; desse permanente rasgo despertador, do espetar da agulha nas carnes dormentes para nos sentirmos, senão úteis, pelo menos vivos e de espinhela erecta.
Ao contrário de Fernando Assis Pacheco, escritores existem que justificam, plenamente, um ritual inverso: que o leitor se levante para o saudar. Um desses escritores, pela sua superior, e rara, arte de (nos) contar, é Mário de Carvalho. A Liberdade de Pátio, um dos últimos títulos publicados, merece esse gesto simbólico de reconhecimento e de gáudio por existir entre nós, apesar dos dias repulsivos que vivemos, um escritor com verbo assim; que amplia essa matriz primordial da nossa identidade, indo às suas fundas raízes, que trata e cultiva a língua, esta nossa antiga e tão maltratada língua, com uma ductilidade tocante e exemplar.
Um livro paradigmático
Fugindo ao que Alexandre Pinheiro Torres designou por «litania do miserabilismo», a escrita de Mário de Carvalho percorre, pelos enxutos territórios da ironia, do fantástico, do nonsense (mesmo quando um travo de amargura os atravessa) e da inteligência discursivas, com desarmante acuidade, a análise deste país prostrado, mas alcandorando-se, na singularidade ressonante da sua voz, muito para além desses limites fabulares. A Liberdade de Pátio, se nos diz da Liberdade como valor primordial da nossa condição, é à essência do substantivo que Mário de Carvalho aporta: a liberdade de ser, mesmo quando o absurdo existencial invade o torrencial prosódico desta peculiar forma de encenar o real.
A escrita do autor de A Sala Magenta, nega-se a dar lastro e expressão às «colónias mentais» indígenas, tornando universal a sua singular visão do espaço autóctone e das suas liminares idiossincrasias, ultrapassando, pela capacidade inventiva, pelo processo diegético que imprime aos textos, as duas assoalhadas dos nossos imaginários, elevando a obra literária aos mais exigentes patamares do discurso cultural hodierno e universal. Mário de Carvalho consegue, como Saramago, vencer os «vitorianismos mentais», o ranço dos pobretes/alegretes, que parecia estar, como desígnio pardo de deuses insanos, reservado às literaturas periféricas. O autor invade, com direito de alforria – pelo prodígio da sua escrita, pelo desassombro dos temas que exibe, dado não se limitar a ser um transgressor de fórmulas, mas um dos seus mais exigentes reinventores –, «a jurisdição temática das grandes potências literárias». Dessa reinvenção in progress é A Liberdade de Pátio um livro paradigmático.
Na obra de Mário de Carvalho permanece, uma confortável, estimulante ambivalência: textos que derivam da sua fulgurante e mágica capacidade discursiva e crítica, pelos caminhos estritos daquilo que a literatura, nas suas derivantes argumentativa e imagética, no gozo de efabular e no contínuo apuro da linguagem, superiormente é, mas, em paralelo postulando, outros sinais se inscrevem na óptica de representação crítica do real, dado que o acto de escrever, como refere Hugo Friedrich, é espaço de afirmação de um autor e do seu modo de representar um tempo e uma realidade: o seu mais profundo, amplo, modo de respirar, digo eu.
A escrita de Mário de Carvalho será, em alguns casos, parafraseando Bernardim Ribeiro, do que nos livros vai dito mas, simultaneamente, conterá ecos bem mais substantivos do que os expressos numa linear descodificação dos seus intrínsecos sinais. Deste modo, na obra ficcional de Mário de Carvalho encontramos as derivativas, num psicologismo rarefeito, das complexidades humanas, ressoando sentidos de transcendência, alienação e sintetismo hegelianos, patentes em Ocaso em Carvangel, Os Alferes e, sobretudo, nessas obras-primas que são Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde e A Sala Magenta. Mas será nas consonantes temáticas e na versatilidade, na pessoalíssima forma de abordar o fenómeno literário, que Carvalho se encontrará próximo daquilo que Ludwig Marcuse designa por multiverso, ao invés de universo. Mais do que aquilo que conta é o modo como o autor conta, essa construção total da língua entrosando-se no corpo largo da prosódia e na estrutura da diegese.
A Liberdade de Pátio, livro em que o rigor analítico, a profunda cultura do autor, o tratamento da linguagem e a ironia se conjugam para nos dar uma visão inteligente e inesperada dos modos de abordagem crítica aos poderes instituídos e à forma como esses poderes são utilizados para condicionar as liberdades individuais e colectivas. Através de um certo, e controlado, nonsense, de mistura com traços surrealizantes, este livro de Mário de Carvalho denuncia com agudeza alguns dos sinais de regressão civilizacional – há nestes textos derivativas morais que nos estremecem –, que atravessam o nosso tempo.
Liberdade de Pátio, de Mário de Carvalho
Porto Editora/2013