Hiroxima, sempre
Há crimes que podem ser esquecidos, há crimes que podem ser perdoados, mas há crimes que não podem ser perdoados nem esquecidos. Certamente por isso, no passado dia 6, acompanhando decerto o que ocorreu nos mais diversos lugares do mundo, a televisão portuguesa assinalou o 70.º aniversário do lançamento sobre a cidade japonesa de Hiroxima da primeira bomba atómica usada como arma de guerra, isto é, não apenas como ensaio de um novo tipo de armamento, o que já antes acontecera no deserto de Nevada, USA. Setenta anos depois, ainda não foi possível determinar com algum rigor o número de civis que foram assassinados pela bomba no momento da explosão, calculando-se contudo que terá sido entre oitenta mil e cem mil, número que sobe para perto de duzentos e cinquenta mil quando se trata do número de vítimas a médio e longo prazo em consequência dos danos físicos irreparáveis produzidos pelas radiações. Como tristemente se sabe, houve uma reincidência do crime poucos dias depois: a 9 de Agosto, outra bomba atómica foi lançada sobre a cidade de Nagasaki com consequências não menos terríveis que as provocadas em Hiroxima. A condenação e repugnância generalizadamente provocadas por esta dupla barbaridade não se extinguiram com o decorrer das décadas e constituem como que uma imagem de marca do comportamento norte-americano no plano militar. Por isso os diversos e sucessivos porta-vozes dos Estados Unidos têm vindo, desde 45, a tentar a invocação de supostas justificações, ou pelo menos de circunstâncias atenuantes, para o que foi de longe o maior massacre de populações civis e indefesas ao longo de todos os séculos da História. Infelizmente para eles, essa marca de infâmia não se apaga nem se atenua. E é lembrada pelo menos uma vez em cada ano, se não sempre que os Estados Unidos infringem as leis internacionais e as da mera humanidade para defesa dos seus interesses inconfessados e inconfessáveis.
O primeiro episódio
Os Estados Unidos têm vindo a alegar que o bombardeamento atómico de Hiroxima e Nagasaki permitiu salvar as vidas de milhares de soldados norte-americanos e japoneses que teriam morrido se as hostilidades se tivessem prolongado por meses ou sequer por semanas. Está provadíssimo que é mentira: que o governo japonês, consciente de que a guerra estava perdida, se preparava para capitular. Na verdade, não só as suas forças militares estavam já irremediavelmente batidas como a anulação pela URSS, em Abril de 45, de um pacto soviético-nipónico de não-agressão em tempos assinado significava claramente que, uma vez derrotado o nazismo alemão, a intervenção soviética contra o agressivo imperialismo japonês se tornara previsível e mesmo iminente. Esta circunstância, aceite e registada pela generalidade dos historiadores, foi o factor decisivo para o uso das armas atómicas: tratou-se não apenas de acelerar a rendição nipónica mas também, e sobretudo, de exibir perante a URSS a posse de uma terrível arma que, usada no Japão, poderia ser usada noutros lugares e circunstâncias. Complementarmente, os Estados Unidos evitavam que a entrada em acção de forças soviéticas contra o Japão pudesse permitir que a URSS participasse na posterior ocupação do Japão, tal como aconteceria na Alemanha, e desse modo retirasse aos Estados Unidos facilidades na colonização económica que estava já planeada e, como se sabe, aconteceu. Por isso, historiadores diversos entre os quais alguns norte-americanos, identificam Hiroxima e Nagasaki como tendo sido o primeiro episódio da Guerra Fria. Isto é: os Estados Unidos decidiram assassinar centenas de milhares de civis indefesos, milhares deles com morte imediata e outros a longo prazo, por motivos político-ideológicos e com uma inédita falta de mínimos escrúpulos. Por isso Hiroshima e Nagasaki não podem ser esquecidas nem perdoadas. Nunca. E todos os anos são lembradas pela televisão e não só.