Dignidade

Nuno Gomes dos Santos

Ray Korona deixou a advocacia e fez, das cantigas, a sua vida, no entanto advogando causas. Pelos direitos dos trabalhadores, contra o trabalho infantil, pela saúde pública, pela dignidade. Nos Estados Unidos e até 2014, ano em que morreu.

Poucos o conhecerão aqui em Portugal. Muitos o conheceram e com ele cantaram nos EUA, país enorme nos gostos, nos géneros, nos talentos e na arte de bem esconder quem sai da linha, quem pisa o risco, quem canta como Pete Seeger, quem luta como Angela Davies, ou quem exalta a dignidade, como Ray Korona.

Vem isto a propósito de um texto publicado recentemente num jornal generalista, digamos assim por ser esta classificação anódina, assinado por um humorista(?) fedorendo que só o é, humorista, por ter entrado no último lugar da última carruagem de um combóio conduzido pelo talento do único gato que vale a pena.

Diz o rapaz, a quem dão direito a coluna com fotografia, num artigo intitulado «Pobres, mas honrados: Portugal 1957, Grécia 2015», que «os gregos de 2015 são os portugueses de 1957. Isolados, contra tudo e contra todos, pobres, mas honrados».

O miúdo, convicto das suas ideias e da piada inaudita das mesmas, afirma a similitude entre o ano de 1957 de Portugal e o de 2015 da Grécia. Ou seja: os «pacatos» portugueses de 1957, que viviam num regime de terror e, por isso, de eleições fraudulentas, como foram as de 1958, não podendo expressar democraticamente a sua vontade no voto, são iguais (?) aos gregos que, em 2015, votaram livremente um não à austeridade imposta pelos mercados, pelos números do lucro contra as pessoas que pretendem viver, apenas, em dignidade. Ó menino! Não dá para ser, pelo menos, mais discreto, menos ostensivo, mais... diplomata? É que a comparação entre as duas situações históricas é burra! De um lado, quem dizia que estávamos orgulhosamente sós era um governo ditatorial que não ouvia o povo; do outro, quem expressou o seu oxi foi o povo, como em democracia se deve fazer. Percebe?

Para finalizar: diz o rapaz a quem concedem uma coluna semanal porque outros apanharam na primeira safra o melhor da trupe (temos pena...) e, do mal o menos, pensaram «vamos lá agarrar este que, se calhar, aprendeu alguma coisa com o mestre») que, «segundo os comentadores da esquerda, os gregos optaram pela dignidade. Segundo a realidade, optaram também pela bancarrota». Cita Baptista Bastos («A Grécia pode perder esta batalha. A honra não a perderá»), ou José Vitor Malheiros («Os gregos deram a toda a Europa e a todo o mundo uma lição de coragem e de dignidade»).

O fulano goza à brava com isto. Não lhe passa pela cabeça o que é isso de dignidade. Não sabe que a dignidade foi defendida, em 1957 (por exemplo, já que foi o ano que escolheu para a sua diatribe), por muitos portugueses que lutavam pela democracia, que é, lembro, o poder do povo, que foram presos, torturados e, até, assassinados, e teimando em reivindicar um oxi de 48 anos ao fascismo.

Resta-me voltar a Ray Korona. Numa canção sua afirmou: «we'll never rest until the the day all people live in dignity» (não descansaremos até chegar o dia de vivermos todos em dignidade).

Brincar é giro até um certo ponto. Não se belisque, porém, nem a brincar, a dignidade (afinal, a vida) das pessoas. Apenas porque, isso, é indigno.




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