A Festa vai ao Cinema

A música nos filmes

Existe um preceito que costuma ser usado com frequência no sentido de constituir uma delimitação quando se pretende definir e analisar a Música para o Cinema: quanto menos ela se notar, melhor ela é. Mas será que este postulado, cujo alcance se compreende, constituirá uma regra? E quantos casos conhecemos queresultam em excepções flagrantes a essa mesma regra?

Image 18695

É fora de dúvida que a citada frase, apesar da sua aparente razoabilidade, pressupõe que a música de um filme não deve sobrepor-se ou substituir-se, pela intensidade ou poder persuasivo, a outros dispositivos fílmicos:

  • a própria estória e a forma como o argumentista entendeu contá-la;

  • os diálogos e o modo como nos são dados a ouvir;

  • a representação dos intérpretes;

  • os sinais, os códigos, as convenções, enquanto indícios clarificadores de uma dada intriga, no que se refere à época histórica ou ao género cinematográfico;

  • a fotografia, o tipo de planos, sua dimensão e enquadramento;

  • os ângulos da câmara e as deslocações desta;

  • o movimento no interior dos enquadramentos (mise-en-scène) ou a montagem que liga,

  • pontua, secciona ou interrompe a compreensão linear ou fragmentada de uma cena isolada ou da totalidade do filme;

  • o uso da iluminação como elemento de caracterização espácio-temporal;

  • os restantes componentes de uma banda sonora, como os ruídos ou mesmo a música de cena;

  • finalmente, a conjugação e harmonização de todos estes elementos sob a direcção do verdadeiro «autor» do filme: o realizador.

Parecendo esta lista trair um propósito de hierarquização convencional, há que convir que a nossa habituação de frequentadores da sala escura nos ensinou a assistir amiúde à subversão de um tal escalonamento relativo ou até mesmo nos despertou a capacidade de subvertermos, nós próprios, essa ordem de importância, sendo hoje pacífico o entendimento de que, ao longo de um filme, o peso relativo de todos e cada um daqueles dispositivos é inconstante e claramente flutuante.

Dos primeiros passos à Idade de Ouro
de Hollywood


Longos anos passaram desde a época em que a música se ouvia em primeiro plano – para utilizar uma formulação consagrada – sendo ainda preciso esperar algum tempo para que passasse a ouvir-se em segundo plano.

Eram aqueles os tempos gloriosos do cinema mudo quando, nas salas de cinema, um voluntarioso pianista acompanhava musicalmente a projecção dos filmes, reagindo, momento a momento, às peripécias que se desenrolavam no grande ecrã.

Com a transição do pianista-solista para formações mais amplas, passava-se também do terreno da composição espontânea para o da composição metódica, assim se dando uma primeira mudança qualitativa na forma de abordar este domínio musical. Sendo extremamente improvável um conjunto instrumental reagir às imagens de forma una e adequada, a improvisação individual, realizada no momento, dava assim lugar à execução colectiva antecipadamente organizada, susceptível mesmo de ensaios prévios, a partir de uma partitura expressamente escrita por um compositor.

Seguir-se-ia então um período no qual o aproveitamento de peças provenientes do repertório clássico e saídas do génio de compositores famosos passou a ser habitual, naquela que constituiu uma fase transitória até que os avanços técnicos permitissem a encomenda a autores vivos de obras musicais originais destinadas a acompanhar in loco tal ou tal filme. Dizem as crónicas que, mesmo antes da invenção do sonoro, o primeiro grande compositor convidado com este propósito terá sido Camille Saint-Saëns (1835-1921) que escreveu, em 1908, a música para L’ Assassinat du Duc de Guise, um filme de 18 minutos realizado por André Calmettes e Charles Le Bargy.

Entretanto, mesmo neste período inicial, logo o «mercado» se encarregou de intervir, impondo neste caso formas eminentemente práticas de alcançar idênticos resultados através de processos mais rentáveis, mesmo que com o eventual menosprezo da qualidade das obras.

E foi assim que, numa antecipação de décadas em relação à hoje corriqueira produção industrial de música pré-gravada (para uso em sonorizações radiofónicas, documentários televisivos ou spots publicitários), surgiu um primeiro exemplo de música pré-composta em abstracto com a finalidade de dar ênfase a vários tipos de sentimentos ou de situações dramatúrgicas e cinematográficas genericamente catalogáveis: o drama, a comédia, a aventura, o mistério, a tempestade, a bonança, a amizade, o ódio. Tratava-se de uma colecção de 25 peças para piano-solo (25 temas-tipo, 25 pautas musicais) que se destinavam a ser usadas pelos pianistas nas salas de cinema e que foram compostas por John Stephan Zamecnik (1872-1953), um ex-aluno de Antonín Dvorák. Como poderá calcular-se, um verdadeiro bestseller...

Entre os primeiros grandes autores de música para o cinema destacaram-se europeus consagrados que vamos encontrar nos EUA – a exemplo, aliás, de tantos outros nomes célebres de realizadores e de compositores que, anos mais tarde, se exilaram naquele país fugindo à guerra, à perseguição e aos crimes políticos e humanitários perpetrados, na Europa, pelo regime nazi.

No número daqueles pioneiros ou dos que se lhes sucederam até inícios dos anos 50, alimentando com o seu talento a chamada Idade de Ouro de Hollywood, citem-se, a título de mero exemplo, os nomes de Max Steiner, Erich Korngold, Franz Waxman, Miklos Rózsa, Dimitri Tiomkin ou Bernard Herrmann que vieram juntar-se a outros norte-americanos ilustres, como Alfred Newman, Hugo Friedhofer, David Raskin ou Alex North.

Ficaria, aliás, a dever-se a Bernard Herrmann, o compositor favorito de Alfred Hitchcock, uma concepção autónoma e original da música para filmes, enquanto domínio específico e com formas próprias de desenvolvimento, afastando-se, assim, da mera reprodução ou imitação das consabidas fórmulas da música clássica de raiz europeia e, em concreto, do período Romântico.

Ainda no campo teórico, logo passada cerca de uma década após a descoberta do inema sonoro, um grande compositor norte-americano – Aaron Copland, também ele um notável compositor para o Cinema (Ratos e Homens, 1939, real. Lewis Milestone; A Nossa Cidade, 1940, real. Sam Wood; A Herdeira, 1949, real.

William Wyler) e influência principal em inúmeros outros compositores para filmes –, analisava de forma pioneira, em What to Listen for in Music, as formas de interacção entre a música e a imagem.

EUA e Europa: meios de produção
e escolhas estéticas


Por razões eminentemente culturais, mas também claramente económicas, pode dizer-se que, regra geral, são bem diversos os caminhos estéticos da música para o cinema, se compararmos as suas experiências mais conseguidas, tendo por origem os EUA ou a Europa.

No primeiro caso, as próprias descobertas e inovações tecnológicas no campo da gravação sonora e, sobretudo, a enorme capacidade económica dos grandes estúdios e das grandes produtoras, suscitaram, à partida, opções estéticas seguras na adopção de obras grandiosas, de grande impacte sonoro e, mesmo, com uma utilização quase obsessiva desse novo elemento cinematográfico.

Não é assim de estranhar que os grandes potentados da indústria tivessem à sua disposição, «aliviando» de forma substancial o trabalho criativo dos compositores, todo um manancial de profissionais desta área: não apenas orquestras que podiam atingir grandes proporções mas ainda um considerável e especializado contingente de técnicos, como maestros, editores e supervisores de música, orquestradores ou sonorizadores, muitos deles participando directamente nas várias fases intermédias da construção de uma banda sonora e da produção de um filme.

Pelo contrário, na Europa, após a II Guerra Mundial, com o Cinema a ser suportado em parte substancial por subsídios estatais enquanto imprescindível forma de Arte, e a actividade de produtoras independentes com diminuta capacidade de penetração ou disseminação multinacional – e, consequentemente, sistemas de distribuição menos agressivos e poderosos –, essas próprias limitações como que fizeram encaminhar os criadores para caminhos estéticos em muitos casos totalmente diversos, podendo dizer-se que se concentravam num único profissional, o compositor, as várias tarefas atrás descritas.

Recusando comparações e distinções mecânicas e sem sentido (e naturalmente não deixando de considerar notórias excepções num e noutro campo), pode dizer-se, em termos muito genéricos, que a própria limitação de meios terá imposto aos músicos europeus parcimónia e escolhas criteriosas em termos criativos.

Por outro lado, no domínio da construção cinematográfica, propriamente dita, o gosto pelo jogo dialéctico dos vários conteúdos e dispositivos fílmicos, já atrás abordados – imagem, diálogos, ruídos, música, mise-en--scène e montagem – bem como a contaminação positiva e estimulante do documentarismo social e até de novos géneros literários, vieram trazer ao Cinema um tratamento diferenciado de cada um desses elementos ou da relação interna entre eles.

Não é assim de estranhar que, por exemplo, nos movimentos de renovação da Nouvelle Vague francesa ou do Free Cinema inglês, essas tendências estéticas se tenham reforçado.

Pode dizer-se, mesmo, que a utilização nas partituras para filmes de instrumentos solistas ou de pequenos conjuntos mais próximos da música de câmara, bem como uma sua utilização mais esparsa e menos pleonástica, passou a ser um princípio dominante no melhor cinema europeu.

Finalmente, não menos importante, é necessário sublinhar a diferença substancial que, pela história, pela tradição e até pelos hábitos de consumo, existe entre a Europa e os EUA em termos de produção e recepção nos vários domínios da arte e da cultura erudita ou popular, até mesmo em termos comportamentais.

Passada esta sinopsis histórica (e ao mesmo tempo que imaginamos ouvir em fundo um arpejo de harpa...), façamos então um flashback ao início destas notas: ao papel da música no cinema.

Os vários níveis de recepção
e percepção da música no cinema

Considerando a ocorrência de um contacto visual e auditivo simultâneo no processo de fruição de uma dada película, parece pacífico dividir em dois grandes grupos os níveis de percepção da música nos filmes:

  • toda a música susceptível de ser escutada por uma personagem que o espectador vê

  • evoluir no ecrã, sendo ela proveniente ou não dos limites do enquadramento da imagem mas verosimilmente produzida no (ou oriunda do) espaço mais ou menos amplo dessa acção em concreto, pertence ao primeiro nível auditivo, à chamada música diegética ou comummente designada música de/em cena;

  • inversamente, toda a música que não é ouvida por essa personagem mas sim apenas pelo espectador pertence ao segundo nível auditivo, à música não-diegética, à chamada música de fundo (para usar uma terminologia menos feliz mas muito consagrada).

Podendo ser várias, consoante os autores, as denominações técnicas destes níveis auditivos, importa ter em conta as infinitas subdivisões ou ramificações de cada um deles bem como as inúmeras fontes de origem da música que sai dos altifalantes de uma sala escura. Mais ainda, em termos psicológicos, é bem diferente a forma como estes dois níveis auditivos agem sobre o espectador ou provocam o seu tipo de adesão ou rejeição.

De facto, enquanto que a música de cena suscita uma mera fruição passiva e não necessariamente empenhada – mesmo que, nos melhores casos, possa despertar associações de sinais, códigos ou mesmo convenções que ajudam a tornar claras (sem o uso pleonástico da narração ou dos diálogos) uma determinada época, classe social ou hábitos culturais –, já a música de fundo reforça, por assim dizer, ideias exteriores ao próprio ecrã, sublinha sentimentos de identidade ou repulsa, invoca conceitos filosóficos ou princípios éticos, podendo mesmo criar fortes momentos de cumplicidade entre o comentário musical não ouvido em cena e o próprio espectador (!), como que à revelia e à socapa da incauta personagem...

Se atentarmos apenas nestas simples constatações que qualquer amante de cinema pode quotidianamente fazer, que dizer quando aqueles dois principais níveis auditivos se contaminam entre si? Ou seja, por exemplo, quando a música de cena se transforma de modo imperceptível em música de fundo; ou quando, na banda sonora, o compositor decide passar sem disfarce para o primeiro nível auditivo um tema musical que pertencia até aí ao segundo nível; ou quando se subverte a própria banda sonora tratando determinada música como extensão do «ruído» quando não atribuindo à construção da «pista de ruídos» um carácter quase-musical?

Tomando como exemplo concreto uma sequência verdadeiramente admirável do filme Amadeus (1984, real. Milos Forman), é-nos dado participar, próximos do fim, num momento impressionante durante o qual Mozart, no seu leito de morte, dita a Salieri o Confutatis do seu Requiem em Ré menor. De início, Mozart trauteia as notas e Salieri escreve-as na partitura. Mas, ao mesmo tempo, músico que é, este consegue «ouvir» e «decifrar» (e nós com ele) a posteriori, na sua lógica interna, o resultado final da partitura! Paralelamente, numa engenhosa manipulação da banda sonora, «assistimos» à forma pela qual, a muito custo, Mozart vai trauteando a espaços essas notas mas como se constituíssem um monólogo interior (já orquestral), ou seja, é-nos revelado, a par e passo, o pensamento musical do Mestre!

Independentemente do maior ou menor engenho através do qual o tratamento da música, dos diálogos, dos ruídos, contribui para uma banda sonora criativa, indispensável é ter presente que o Cinema é, por definição, uma forma de Arte que incorpora, modernamente, os contributos de várias outras Artes (visuais, auditivas, performativas), todas elas com as suas características, códigos e convenções próprias, em termos de emissão e recepção, mas dissolvidas e resolvidas numa totalidade-outra, na qual aqueles atributos se transformam e interagem na formulação de novas sínteses.

Afigura-se assim natural que estas questões tenham estado presentes na preparação deste concerto sinfónico muito especial: considerando as várias origens nacionais da filmografia, dos seus realizadores e dos compositores representados; contemplando géneros cinematográficos diferenciados; abrangendo várias épocas da produção cinematográfica, uma Arte relativamente recente; e colocando lado a lado peças de grandes compositores do repertório sinfónico usadas no Cinema e obras expressamente escritas para o grande ecrã.

Independentemente do ano de produção cinematográfica, há determinados princípios de composição, provenientes do romantismo e do sinfonismo do século XIX, que os grandes mestres da composição para o cinema livremente adoptaram, embora transpondo-os de um modo mais ou menos criativo para o século XX e para os mecanismos internos desta expressão artística.

Por exemplo, a noção de idée fixe para sublinhar de modo insistente determinadas situações dramatúrgicas ou a utilização de Leitmotive como forma de identificar e diferenciar personagens, atributos ou ideias, são, entre outros, princípios de composição que iremos encontrar em muitas peças originais escolhidas para o repertório deste concerto.

Ele abrange um período considerável e representativo de várias correntes estéticas do cinema sonoro, sobretudo as bandas sonoras do cinema de grande espectáculo, para grandes formações instrumentais, por definição inteiramente adequadas à dimensão do Palco 25 de Abril e à enorme plateia ao ar livre que sobre ele anualmente se debruça.

Manuel Jorge Veloso




Mais artigos de: Festa do Avante!

A Festa vai ao Cinema

Image 18694

Sexta-feira, 4 – 21.30 Horas – Palco 25 de Abril

O espectacular concerto de abertura da Festa deste ano terá como repertório excertos célebres das bandas sonoras de filmes representativos de várias cinematografias mundiais.
Em destaque, estarão peças musicais pertencentes ao repertório de grandes compositores da História da Música, que o Cinema utilizou, e ainda partituras muito conhecidas escritas por compositores que a História do Cinema já consagrou.
Em palco estarão a Orquestra Sinfonietta de Lisboa, sob a direcção de Vasco Pearce de Azevedo e o pianista António Rosado.
 

Com olhos de ouvir!

O Cinema pertence, claramente, às formas de Arte cujos vários componentes e dispositivos, criativos e técnicos, agem dialeticamente entre si, da forma mais intensa, ágil e surpreendente.Não por acaso, o Cinema encontra-se também no número...

Programa

OrquestraSinfonietta de Lisboa Direcção Vasco Pearce de Azevedo Vasco Pearce de Azevedo é, desde 1995, Maestro titular e director musical da Orquestra Sinfonietta de Lisboa, com a qual tem realizado estreias absolutas de obras de Eurico Carrapatoso,...