A velha infâmia

Correia da Fonseca

Foi, num dos canais acessíveis por cabo, um breve debate acerca do documento recentemente apresentado por um grupo de economistas do Partido Socialista ou a ele afectos com maior ou menor proximidade. Além do moderador, o jornalista Paulo Magalhães, lá estavam Mário Centeno, como líder do referido grupo, um sujeito de nome Luís Pais Antunes, jurista que integrou o fugidio governo de Durão Barroso como secretário de Estado do Trabalho, e, coisa pouco vista nestes eventos, Carlos Carvalhas. Foi a conversa decorrendo e, a certa altura, centrou-se sobre o flagelo do desemprego e a mais que suspeita veracidade dos números apresentados pelo Governo. Aí, Carvalhas fez o óbvio: denunciou os factores que falsificam os números apresentados, designadamente o quase astronómico crescimento do número de trabalhadores que, de facto desempregados, são remetidos para «cursos de formação» e por isso abatidos aos números do desemprego: tantos que em poucos anos passaram de cerca de 25 mil para o quíntuplo, 125 mil. Carvalhas também denunciou, de passagem, que a frequência de tais cursos não resulta no reemprego dos trabalhadores «reciclados», digamos assim, mas antes na sua transferência para outros cursos da mesma índole, sempre com o consequente abate nos números globais do desemprego, e assim num percurso de enganos que ameaça ser interminável.

Uma antiga sabedoria

Foi por essa altura que o Antunes descarrilou da boa via da básica correcçãozinha, dos modos minimamente higiénicos, e passou a disparar insultos: acusou o Carlos Carvalhas de estar a mentir e, mais, de ao mentir estar a prosseguir uma prática permanente dos comunistas e do comunismo. Tendo Carvalhas exibido de imediato a prova da veracidade do que dissera, pois tratava-se de números oficiais do IFP, Instituto de Formação Profissional, pelo que ficava demonstrado que o mentiroso, e por acréscimo caluniador, era o próprio Antunes, nem assim a criatura deu sinais mínimos de ter vergonha do seu excesso. Percebe-se: há gente para quem a lisura da discussão e o bom fundamento dos argumentos usados são irrelevantes, o que lhes é importante é o uso do anticomunismo furioso e ilimitado que parece ter herdado directamente do fascismo há já quatro décadas arredado do poder mas não da vida política portuguesa, onde subsiste por vezes em tom menor e hipócrita, noutras alturas tonitruante e sem máscara. Não é que o destempero do Antunes signifique seguramente que ele se inclua nessa concreta subespécie: o que ali se viu, isso sim, foi que está contaminado pela convicção de que contra os comunistas vale o uso da velha infâmia da calúnia, tal qual como nos bons velhos tempos, e também que para com um interlocutor comunista não é obrigatório usar dos modos civilizados de diálogo que são generalizadamente recomendados. É claro que naquela circunstância a incorrecção e o impudor se agravavam por implicarem a tentativa de enganar os cidadãos telespectadores mesmo a despeito de Carvalhas ter exibido a prova da impostura, isto é, de que o mentiroso era o Antunes por acusação caluniosa. Mas também o anticomunismo de cepa salazarista, ou que aparenta sê-lo, tem razões que a razão desconhece. E o porventura mais importante é que o uso da mentira óbvia, como neste pequeno episódio havido em «diálogo democrático», ou da falsificação mais trabalhada e mais entrincheirada, como em muitos outros casos, integra o quotidiano português nos mais variados assuntos. Sempre com o objectivo duplo de conjurar o «perigo comunista», que teima em resistir aos sucessivos anúncios de óbito, e de branquear o criptofascismo que anda por aí, não se dirá que em cada esquina, mas provavelmente em muitos gabinetes atapetados. Alguém um dia escreveu: «caluniai, caluniai, que da calúnia alguma coisa fica!». Talvez o Antunes não tenha aderido conscientemente a esta já velha sabedoria. Mas que deu sinal de o ter feito, isso deu.




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