Odessa não esquece

Luís Carapinha

Cum­priu-se o pri­meiro ani­ver­sário dos san­grentos acon­te­ci­mentos de 2 de Maio em Odessa que cul­mi­naram com o in­cêndio e a cha­cina na Casa dos Sin­di­catos, cei­fando a vida de mais de 40 an­ti­fas­cistas ucra­ni­anos. A fu­nesta data foi as­si­na­lada sob mor­daça e forte apa­rato mi­litar na ci­dade herói do Mar Negro, de re­co­nhe­cidas tra­di­ções re­vo­lu­ci­o­ná­rias – por ali passou a re­vo­lução russa de 1905-07 e após a Re­vo­lução de Ou­tubro, em Ja­neiro de 1918, foi pro­cla­mada a efé­mera Re­pú­blica So­vié­tica de Odessa. Sinal dos tempos que a Ucrânia atra­vessa, pela pri­meira vez desde o fim da II Guerra não se re­a­lizou a tra­di­ci­onal ma­ni­fes­tação do 1.º de Maio. Ainda assim, ti­veram lugar con­cen­tra­ções que reu­niram co­mu­nistas e an­ti­fas­cistas ucra­ni­anos. Nas vés­peras do 9 de Maio o poder saído do golpe de Es­tado da Maidan, em Fe­ve­reiro de 2014, teme novas ex­pres­sões po­pu­lares de re­púdio da di­ta­dura na­ci­o­na­lista oli­gár­quica vi­gente. A Junta de Kiev que não he­sitou em lançar uma guerra fra­tri­cida no Don­bass – por agora semi-sus­pensa em re­gime de baixa-média in­ten­si­dade mercê do acordo de cessar-fogo de Minsk II –, com­porta-se em Odessa como um poder ocu­pante.

A 2 de Maio de 2014 uma chusma de grupos apoi­antes da Maidan e ar­ru­a­ceiros, em que pon­ti­fi­cavam mem­bros de es­tru­turas ne­o­nazis que fun­ci­o­naram como tropa de choque do golpe de 2014, caso das «forças de au­to­de­fesa da Maidan» e do «sector de di­reita», re­a­li­zaram uma marcha in­cen­diária nas ruas de Odessa. Ar­mados com bas­tões, ma­chados, cok­tails mo­lotov e armas de fogo, aos brados de «glória à Ucrânia» (lema das or­ga­ni­za­ções na­ci­o­na­listas de Stepan Ban­dera, cúm­plices do ocu­pante nazi e res­pon­sá­veis por inú­meras atro­ci­dades na II Guerra, que o par­la­mento ucra­niano pro­clamou re­cen­te­mente como «com­ba­tentes da li­ber­dade»), «por uma Ucrânia unida», «morte aos ini­migos» e pa­la­vras de ordem anti-russas, os in­te­grantes da co­luna fas­cista, muitos não re­si­dentes em Odessa, pro­vo­caram de­sa­catos e con­frontos com os par­ti­ci­pantes de uma con­cen­tração an­ti­maidan. Pe­rante a ino­pe­rância e pas­si­vi­dade das forças da ordem, uma onda de vi­o­lência varre as ruas de Odessa. É sel­va­ti­ca­mente ata­cado o acam­pa­mento das forças an­ti­fas­cistas, si­tuado no parque con­tíguo à Casa dos Sin­di­catos. No local, que fun­ci­o­nava como centro de agi­tação e re­colha de as­si­na­turas em prol da re­a­li­zação de um re­fe­rendo sobre a fe­de­ra­li­zação e o es­ta­tuto da língua russa, os agres­sores des­troem e queimam as tendas. Os opo­si­tores da Junta pro­curam re­fúgio na Casa dos Sin­di­catos, que acaba por se trans­formar numa ar­ma­dilha. A horda ne­o­fas­cista in­veste com ex­trema vi­o­lência e cru­el­dade contra os par­ti­dá­rios an­ti­fas­cistas si­ti­ados. São ar­re­mes­sadas gar­rafas in­cen­diá­rias. As chamas pro­pagam-se ra­pi­da­mente aos pisos in­fe­ri­ores e o fumo in­vade o edi­fício. Há ima­gens que mos­tram dis­paros contra os re­sis­tentes que se en­con­tram no in­te­rior em chamas. Muitos tentam es­capar para os an­dares su­pe­ri­ores e saltam para a morte pelas ja­nelas. A corja en­fu­re­cida ar­re­mete contra aqueles que lo­gram aban­donar o prédio em chamas. Du­rante a ma­tança não se vê a po­lícia e a acção dos bom­beiros é re­tar­dada. Há in­dí­cios da uti­li­zação de subs­tân­cias tó­xicas des­co­nhe­cidas; vá­rias ví­timas apre­sen­tavam a face car­bo­ni­zada, sem quei­ma­duras no corpo ou ves­tuário.

Entre os que caíram em Odessa a 2 de Maio há ho­mens e mu­lheres, gente de todas as idades (o mais velho com 70 anos e o mais novo com apenas 17 era mi­li­tante da ju­ven­tude co­mu­nista, de seu nome, Vadim Pa­pura). Entre os mortos há um de­pu­tado da As­sem­bleia Dis­trital de Odessa, eleito pelo Par­tido das Re­giões.

Mais tarde sabe-se que grupos de «ex­ter­mínio» ope­raram no in­te­rior da Casa dos Sin­di­catos, o que cor­ro­bora as fortes sus­peitas de ser ter tra­tado de uma pro­vo­cação pre­me­di­tada, en­vol­vendo o poder gol­pista na Ucrânia. Nas vés­peras do 2 de Maio es­teve em Odessa An­driy Pa­rubiy, ac­tual vice-pre­si­dente da Rada e an­te­rior co­man­dante das «forças de au­to­de­fesa da Maidan», um dos prin­ci­pais sus­peitos da ope­ração de li­qui­dação dos «de­fen­sores da Maidan» de 18-20 de Fe­ve­reiro em Kiev que an­te­cedeu a con­su­mação do golpe de Es­tado.

In­du­bi­ta­vel­mente a ma­tança por muitos ape­li­dada de Khatyn de Odessa, em re­fe­rência à al­deia bi­e­lor­russa in­cen­diada em 1943 pelos nazis, exibe as marcas do re­gime an­ti­de­mo­crá­tico e ter­ro­rista no poder em Kiev, graças ao apoio dos EUA e UE.

Lembre-se que após o triunfo do golpe de Es­tado, a Cri­meia havia de­ci­dido a rein­te­gração na Fe­de­ração Russa, e no Don­bass e vastas re­giões do Leste e Sul da Ucrânia crescia a in­dig­nação e re­volta. A 7 de Abril de 2014, de­pois da vi­sita do di­rector da CIA a Kiev, o pre­si­dente in­te­rino da Junta de­cla­rava o início da «ope­ração an­ti­ter­ro­rista». Em Kharkov o re­gime pro­cede a de­ten­ções em massa. Ig­no­rando o re­sul­tado das ne­go­ci­a­ções de Ge­nebra de 17 de Abril a Junta inicia a 24 de Abril o as­salto à ci­dade de Sla­vi­ansk com tan­ques e he­li­cóp­teros. O vice-pre­si­dente dos EUA, Biden, vi­si­tara Kiev nos dias 21 e 22 de Abril.

De­pois da cha­cina de Odessa, re­a­lizam-se a 25 de Maio as elei­ções pre­si­den­ciais que a de­cla­ração da Ci­meira Ucrânia-UE que teve lugar há dias clas­si­fica de «li­vres» e «justas». O ven­cedor, Po­ro­chenko, pro­me­tera a paz, mas apro­fundou a guerra. Foram as der­rotas mi­li­tares em ter­ri­tório do Don­bass que obri­garam o poder de Kiev a sentar-se à mesa das ne­go­ci­a­ções. En­quanto isto os res­pon­sá­veis do mas­sacre de Odessa con­ti­nuam im­punes. As in­ves­ti­ga­ções ofi­ciais tra­mitam entre a fal­si­dade e a in­con­gruência, rumo ao si­lêncio. Porém, o he­di­ondo crime e os már­tires de 2 de Maio de Odessa não serão es­que­cidos pela Ucrânia que re­siste e luta.

 



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