Vestígios
Foi no Jornal da Tarde, o primeiro telenoticiário da RTP que nos informa, dia após dia, do que vai acontecendo pelo país e pelo mundo. Ou que parece fazê-lo. Foi, pois, nele, mas podia ter sido em qualquer outro serviço de notícias e também em qualquer outro canal. Era segunda-feira, na véspera a selecção nacional de futebol vencera a da Sérvia e o PSD ganhara as eleições regionais da Madeira. Também em França tinha havido eleições, mas a RTP não parecera muito impressionada com isso nem com a aliás já prevista vitória da UMP de um Sarkozy em rodagem para um projectado regresso ao Eliseu. Houve mais notícias de variado calibre, naturalmente, e entre elas a de que uma família, mais uma, perdera a casa onde vivia. O Jornal da Tarde até gastou algum tempo, não muito, a mostrar-nos as medidas de emergência adoptadas pela família, agora sem casa, para se acomodar é claro que muito mal num espaço disponível onde era possível encaixar colchão ou colchões. Depois, o noticiário prosseguiu. Voltou a falar da tragédia do avião despenhado nos Alpes por um piloto enlouquecido, mostrou uma breve reportagem acerca da alegria de um guarda-redes inesperadamente convocado para integrar a equipa portuguesa que defrontaria a selecção de Cabo Verde, fez um breve vôo rasante sobre o Caso da Inexistente Lista VIP e, pouco depois, desceu os seus invisíveis taipais e partiu para outro programa, é claro que com escala pelos inevitáveis minutos dos «compromissos comerciais». Lá para traz, diluída, ficava a angústia imaginável, mas de facto não evidenciada pela notícia breve, da família que perdera a casa. Talvez até se entenda a escassa sensibilidade aparente ou efectiva do Jornal da Tarde perante esse drama: afinal, uma família a perder a sua casa, de tão vulgar que se tornou, já nem é notícia à luz do velho critério jornalístico que escolhe como notícia, isso sim, o imaginado exemplo do homem que mordeu o cão, coisa rara e nunca vista. Famílias a perderem a sua casa haverá por aí literalmente aos pontapés, não são interessantes para um serviço de notícias sintonizado com a modernidade informativa.
Quem ganha, quem perde
O que pode ser sintomático e até preocupante para quem com tais coisas se preocupe é que este quase extravio de notícias relevantes, indiciadoras da desgraça que alastrou pelos quatro cantos do País, chegue aos cidadãos telespectadores de mistura com informações de vário género e diverso relevo, desde as que nos dão conta dos incêndios havidos na Califórnia até às inundações acontecidas na China, isto para não referir (naturalmente que com a devida vénia) quanto se refere ao largo mundo do futebol. É certo que o telespectador empenhado em encontrar no seu televisor o que é mais importante pode, estando atento e motivado, aceder a algumas reportagens especiais, transmitidas fora do âmbito dos telenoticiários e frequentemente reveladoras do verdadeiro estado do País real. Quanto a este aspecto, cabe e é mesmo imperioso registar o mérito de alguns desses trabalhos, mas é bom que se entenda que uma reportagem transmitida fora do fluxo normal das informações quotidianas não tem o efeito esclarecedor da inserção no caudal diário e regular das notícias do País. O que acontece é que o carácter eventual de notícias significativas acerca da dramática situação actual do povo português, adicionado à sua dissolução entre irrelevâncias e, pior ainda, entre venenos e imposturas, resulta num factual efeito de desinformação. Neste quadro, as informações verídicas e significativas ficam reduzidas à mera condição de vestígios de uma realidade global que de facto resulta encoberta. Perde a informação como dever. Perde «a verdade a que temos direito», para lembrar aqui a fórmula que Ary doou a um saudoso jornal. Ganham os que exploram e de facto atraiçoam o povo. Isto é, o País.