O terrorismo, a segurança interna e as forças armadas
O ocorrido em Paris contra o jornal Charlie Hebdo e os acontecimentos subsequentes vieram colocar de forma mais incisiva um vasto conjunto de questões em torno do combate ao terrorismo. Do vasto rol de especulações e elucubrações; contrabando de casos, protagonistas, momentos e consequências; reuniões, cimeiras, artigos, palestras e outros conclaves, dois eixos essenciais sobressaem: o da exploração do medo e a tentativa de aplicação de medidas que visam restringir as liberdades, as soberanias e a democracia. Tudo, claro está, em nome da segurança.
Anunciou agora o Governo um pacote de medidas para o reforço do combate ao terrorismo (negociado com o PS), cujo conteúdo concreto ainda não se conhece, desde logo o seu entendimento do que é terrorismo. Lembra-se que Nelson Mandela foi durante muitos anos considerado terrorista. Saltando por cima desse pacote, a que voltaremos quando o seu conteúdo concreto for conhecido, e regressando ao ambiente em consequência dos acontecimentos de Paris, dizia-se que, no plano nacional, soma-se os que aproveitam a vaga para surfar na insistência da alteração da Constituição da República, no sentido da consagração das Forças Armadas poderem ter papel na segurança interna. Justificam-no com essa «coisa do globalismo» e/ou com a urgência perante um acontecimento, e o tempo de demora que os mecanismos consagrados na lei para o efeito necessitam para serem accionados. Os argumentos são, como vê, muito chochos. Reunir órgãos de soberania em situação de urgência, não parece ser aspecto que requeira muito tempo. Aliás, os mesmos que tal defendem e até ilustram, por exemplo, com a França, e o uso que fez e tem feito, em situações muito concretas, de militares em patrulhamento, saltam por cima do facto de as operações (todos as vimos nas televisões) ali realizadas terem sido efectuadas pela polícia e as suas unidades respectivas. Aliás, o mesmo aconteceu na Dinamarca.
Argumentam esses mesmos que a missão dos militares, nessa circunstância, é colaborar vigiando pontos sensíveis. Tal argumento suscita, obviamente, a seguinte questão: como se justifica então tudo o que tem acontecido num país como os EUA, onde proliferam agências, polícias, militares e variadíssimos meios tecnológicos de controlo? Como se percebe, esse argumento é frágil porque, em regra, a entrada dos militares surge após os acontecimentos, já mais numa lógica de acção psicológica, de mostrar força (aliás, nos dias de hoje em França já não se vê militares na rua).
A defesa do envolvimento na segurança interna das forças armadas significa, por parte de muitas pessoas, a mesma reacção, quando colocados perante um determinado crime bárbaro e dominados pela emoção, defenderem a pena de morte, como se isso eliminasse a continuação de prática de crimes que a isso conduzissem, onde tal está instituído. Mas, como se sabe, e o exemplo dos EUA onde essa prática existe o mostra, não elimina. Significa por parte de outros, incluindo militares, a procura de mostrar junto da população a sua «utilidade», perante as campanhas crescentes de descredibilização da Instituição Militar. Seja por estes e/ou outros motivos, não percebem que aquilo que faz as Forças Armadas serem um elemento de coesão nacional, de laço identitário com o povo, é exactamente o facto de o seu papel fundamental ser virado contra o inimigo externo e não contra portugueses. Ignoram ainda que a actuação policial obedece a uma lógica diferenciada da actuação militar: a actuação policial obedece a lógicas de responsabilização individual, de obtenção e preservação de prova, de neutralização do adversário, pois os danos colaterais estão sujeitos a apreciação jurisdicional. A lógica militar é de eliminação do adversário. Mas há também os que defendem tal envolvimento porque outros países NATO o consagram e, por isso, Portugal também tem de o consagrar.
Não é o envolvimento das Forças Armadas na segurança interna que resolve o problema. Não o é em Portugal, como não é nos países que já o contemplam como os vários acontecimentos ocorridos ao longo do tempo o demonstram. Nem é como diz o ministro Aguiar-Branco, que «as participações de Portugal em missões internacionais servem como seguro contra futuros actos de terrorismo contra Portugal e os portugueses». Aquilo que realmente serviria Portugal era ter uma política assente nos interesses nacionais e não uma política de submissão a interesses externos. Era ter uma concepção de que Portugal tem interesses próprios a defender e afirmá-los. Era ter a exigência para que os outros respeitassem os nossos interesses e ter a coragem de dizer não (!) a «“aliados»”, pois as alianças não são o princípio e o fim de uma política externa e de defesa.
Conforme o PCP afirmou, «a prevenção e o firme combate contra o terrorismo, não se confunde nem deve ser pretexto para novas vagas limitadoras das liberdades, dos direitos e garantias dos cidadãos». Torna-se necessário reforçar os mecanismos de cooperação judiciária internacional e de troca de informações para o combate ao terrorismo, numa base de reciprocidade e respeitando os princípios e valores constantes na Constituição da República Portuguesa. Igualmente importante, é adopção de mecanismos de combate ao financiamento do terrorismo, através de off-shores e outras práticas opacas envolvendo estados e instituições financeiras, bem como a rejeição de políticas de ingerência, invasão, ocupação e guerra. Tal como é de rejeitar que o combate ao terrorismo seja transformado num combate entre civilizações ou religiões, até porque nesta matéria haja quem atire a primeira pedra.