Os lugares da morte

Correia da Fonseca

Foi, como bem se sabe, não apenas nos diversos canais da televisão portuguesa mas em maior ou menor grau nas televisões de todo o mundo, uma semana dominada pelos acontecimentos trágicos havidos em Paris ou em Paris iniciados. Segundo as informações prestadas pelas autoridades francesas, neles terão morrido pelo menos doze pessoas, talvez mais, e não será de mais dizer que o mundo se emocionou. Diz-se frequentemente que as gentes se comovem mais com um drama menor ocorrido por perto que com uma grande tragédia acontecida mais longe, e é claro que é assim, mas desta vez não será exagero dizer que a repercussão das mortes havidas em Paris e arredores galgou rapidamente milhares de quilómetros sem perder muito da sua intensidade. No passado domingo, as diversas reportagens televisiva permitiram-nos testemunhar a presença na capital francesa de figuras de topo da representação política vindas talvez não dos quatro cantos do mundo, pois foram notórias algumas ausências, mas quase. É claro que também Portugal lá esteve representado, e lindamente, pelo senhor primeiro-ministro e pela senhora presidente da Assembleia da República, e se as diversas reportagens não cuidaram de nos darem imagens das suas presenças foi decerto por imperdoável incúria e também, é certo, porque o senhor PM não conseguiu desta vez ocupar o seu lugar do costume ao lado da senhora Merkel, sendo de péssimo gosto acrescentar que fica para a outra vez.

Em espera e abandono

Entretanto, é claro que a tragédia de Paris não impediu o mundo de continuar a rodar quer em sentido físico e literal quer em sentido figurado: em diversas geografias, sobretudo nas Áfricas e nas Ásias, ocorreram grandes desgraças que em muitos casos já se converteram em rotinas, sendo que algumas delas têm vínculos talvez distantes, talvez nem tanto, com o problema que emergiu agora em França. E há outras situações que serão menos dramáticas, que são seguramente menos espectaculares, mas que nos atingem com especial intensidade porque, lá está!, acontecem aqui, perto de nós, incluídas no quotidiano do País onde nos cabe viver pelo menos até que dele sejamos escorraçados, o que a muitos portugueses tem vindo a acontecer, como é tristemente sabido. Assim, fixemo-nos apenas nos sete dias da passada semana ou, permitindo-nos um período ligeiramente mais amplo, formulemos uma pergunta verdadeiramente dramática: nos primeiros dez dias deste ano de 2015, quantos cidadãos portugueses morreram nas chamadas «urgências» dos nossos hospitais por carência de cuidados médicos? Terão sido doze, tantos quantos terão sido mortos a tiro em Paris e arredores? Terão sido menos? Terão sido mais? A dúvida é, só por si, insuportável. E, contudo, é evidentemente absurdo supor que poderia haver um movimento de solidariedade internacional pelo menos em homenagem a essas vítimas bem sabemos de quê. Bem sabemos até que pelas cabeças do senhor PM e da senhora dona PAR não passa sequer o vago projecto de se associarem publicamente ao luto por essas mortes. Talvez por uma razão terrível: por se ter tornado natural que os hospitais portugueses, que normalmente são olhados como lugares de tratamento e cura, tenham passado a ser lugares de morte. Não de lugares de inevitáveis mortes perante as quais sempre seriam impotentes e vãos os tratamentos possíveis, mas sim de mortes pelo que é de facto uma forma de abandono. Como se sabe, não são estas colunas que inventam mais esta desgraça que vem percorrendo o País, é a televisão que dela reiteradamente nos dá conta e por isso dela aqui nos ocupamos: nos hospitais portugueses morre-se à espera. Em França houve os que morreram por convicções, em resultado de convencimentos ideológicos ou por força do cumprimento de um dever; em Portugal morre-se em situação de abandono que é consequência de uma gestão incompetente, se não desmazelada, tendencialmente homicida, do sector público da Saúde. Regressa-se à pergunta feita: quantos terão sido nos dez iniciais dias deste ano? Doze como em França? Mais? Menos? Não se saberá ao certo. Vai-se sabendo que morreram. E receando que o seu número continue a crescer.




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