Uma certa maneira de cantar

Tomé Pires

Aquela pomba tão branca
Todos a querem p'ra si
O Alentejo queimado
Ninguém se lembra de ti

Aquela andorinha negra
Bate as asas p'ra voar
O Alentejo esquecido
Inda um dia hás-de cantar

Cantar Alentejano (de Zeca Afonso)

 

Quando falamos do Cante Alentejano ser Património da Humanidade, um turbilhão de sentimentos aparecem e a emoção acaba por prevalecer. Porque, em primeiro lugar, é o Alentejo, o nosso Alentejo, que está a ser reconhecido. Um Alentejo que, situado no interior de um País já de si afastado dos grandes centros, tem sido sempre esquecido e mal tratado. Um Alentejo que é «apenas» a maior região do País, de uma grande riqueza natural e cultural mas que tem sido tão abandonado. Um Alentejo que soube criar as modas alentejanas, um cantar sofrido e dolente, um cantar que nasce para apaziguar e, também, para alegrar o sofrimento, a pobreza, o árduo trabalho de sol a sol nos campos, vividos por gerações e gerações de homens, mulheres e crianças. Um cantar que faz parte integrante de SER Alentejano, da história de um povo que sempre soube lutar pelos seus direitos e mostrar que a força nasce da união, do trabalho colectivo, da solidariedade.

Porque o Alentejano não canta sozinho. Canta em grupo, no trabalho, depois do trabalho, nos momentos festivos, nos momentos tristes também. Cantar é a nossa forma de mostrar que juntos conseguimos mais e melhor, que juntos vamos para a frente, que unidos temos outra força. Outro dos nossos grandes poetas disse: «Nunca vi um alentejano a cantar sozinho com egoísmo de fonte/Quando sente voos na garganta, desce ao caminho da solidão do seu monte, e canta em coro com a família do vizinho. Não me parece pois necessária outra razão – ou desejo de arrancar o sol do chão – para explicar a reforma agrária do Alentejo. É apenas uma certa maneira de cantar.»

E é isto que agora o mundo inteiro vê. Como é natural, devemos estar muito orgulhosos deste reconhecimento do Cante Alentejano a nível mundial, é muito gratifiCANTE e muito importante para nós, alentejanos, e para o País. Acrescente-se que o Cante, em todo este processo já ganhou muito, ultrapassou barreiras e alargou fronteiras, rejuvenesceu-se, ganhou novas dinâmicas e já começou a agregar projectos criativos ligados ao património e à cultura. É o reforço da nossa identidade e isso é um ganho imensurável. Temos, volto a dizer isto, um sentimento grande de felicidade e de orgulho pelo que fizemos e por termos conseguido chegar até aqui, a este PONTO ALTO das nossas MODAS.

Mas a verdade é que temos igualmente de estar conscientes de que este reconhecimento é uma responsabilidade acrescida. É verdade que novas portas se abrem, mas tudo vai passar pela dinâmica dos grupos, dos cantadores e das entidades e associações que têm responsabilidade no que respeita ao desenvolvimento deste território. Temos todos agora que trabalhar ainda com mais empenho na divulgação, preservação, transmissão e salvaguarda do Cante Alentejano. Por isso, a partir de aqui há que continuar a trabalhar pelo Cante, com o Cante e pelo desenvolvimento da nossa região. O mundo olha para nós. E só posso terminar repetindo parte do verso – premonitório – de José Afonso que coloquei em epígrafe «Ó Alentejo esquecido/ inda um dia hás-de cantar”.




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