Viagem ao deserto anunciado

Correia da Fonseca

Uma equipa de reportagem da TVI, ou talvez da SIC, ou talvez da RTP, foi fazer mais uma visita ao interior do País. A aparente hesitação, na verdade simulada, quanto à estação que desta vez tomou a iniciativa de nos mostrar o país desolado quer significar que qualquer delas o poderia ter feito e lembrar que na verdade já todas elas o fizeram. Entende-se porquê. Antes do mais, porque é função do melhor jornalismo revelar os motivos de preocupação ou de alarme que o outro, o jornalismo pior, se esforça por fazer esquecer. Depois, porque a chamada desertificação do interior português não é apenas, nem sobretudo, a consequência de uma natural mutação caracterizada pelo fim da ruralidade à moda antiga, digamos assim, e o crescimento do poder de atracção das cidades como suposto lugar de mais fáceis meios de subsistência e de mais acessíveis formas de prazer: é também consequência directa do desinteresse dos governos centrais pelo destino das zonas do País onde não se decidem os grandes negócios da especulação financeira e que só importa visitar em períodos eleitorais, de tal modo esvaziadas de gente jovem ou pelo menos em idade laboral que nem vale a pena gastar um dinheirão para que ali se mantenham serviços médicos, postais ou outros de primeira necessidade, afinal para servirem uns velhos que já não irão durar muito tempo. Assim, na sua óptica muito liberta de obsoletos pruridos, mais vale esperar que eles morram, o que não pode demorar e tem duas óbvias vantagens: é barato e não dá trabalho.

Em busca dos últimos alentos

Quanto às pessoas temos, pois, que ou partem ou morrem, qualquer destas hipóteses satisfazendo o Governo que por vezes parece desejar, como seu objectivo último, exercer o mando sobre um País povoado apenas pelos seus protegidos e adeptos, que não são muitos mas são bem tratados. Acontece, porém, que não são apenas as pessoas que morrem: são também as casas, as pequenas culturas agrícolas, a espécie de hálito humano que percorre os lugares ainda habitados e lhes transmite como que a própria respiração das gentes. Assim, quando uma reportagem televisiva se dá ao trabalho de visitar certas zonas do interior do País em busca dos últimos alentos da presença humana, é já como se visitasse um deserto em vésperas de total consumação, não por culpa dos factores ambientais que costumam ditar as desertificações mas sim, desta vez, por vontade dos que de longe no mínimo as consentiram ou, mais provavelmente, implementaram as condições que as desencadearam. Sucessivos governos, embora uns mais que outros, comportaram-se como se os satisfizesse uma redução do País a uma faixa litoral com desprezo de todo o resto. Porém, nem sequer se pode dizer que essa redução garantiria o negócio turístico concentrado na oferta balnear, pois bem se sabe que o interior português tem grandes virtualidades para a intensificação da actividade turística, aliás bem se entendendo porquê: porque, embora territorialmente pequeno, Portugal se dispõe no sentido Norte-Sul, desse modo se alongando por um número de latitudes relativamente abundante a que corresponde, como é normal num caso assim, diversidades paisagísticas e climáticas. É duvidoso, de qualquer modo, que os turistas se sintam muito atraídos para a visita a um território apenas povoado por velhos à espera da morte em velhas habitações subsistentes no meio de casas arruinadas. Dir-se-á que ainda não chegámos a esse tristíssimo panorama, é certo, mas não é menos certo que para ele se encaminha o «estado da nação interior» na sequência da acção governativa ou, mais exactamente, da sua inacção. Nem se alegue que ainda estamos longe dessa situação pois, em matéria de decadência e afundamento, as coisas andam quase sempre mais depressa do que se supunha e o desenlace chega mais cedo do que se espera. Como acontece com a morte, mesmo quando previsível. Como esta passada semana aqui tristemente soubemos.



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