Fogo sobre gasolina
Os Estados Unidos da América voltaram a bombardear o Iraque. O pretexto para a iniciativa, para a qual procuram arrastar a UE, foi a ameaça do Estado Islâmico (EI) às comunidades yazidi curda e cristã iraquiana, forçadas a fugir perante o avanço jihadista.
«Os “bombardeamentos humanitários” abriram um precedente para desenvolvimentos bélicos ulteriores»
Na quinta-feira, 14, Washington anunciou ser «muito pouco provável» a realização de uma missão militar para a retirada dos civis que se refugiaram no Monte Sinjar, no Norte do Iraque. O porta-voz do Departamento de Defesa, John Kirby, citado pela Lusa, esclareceu que «a nossa equipa constatou que há muito menos yazidis no Monte Sinjar do que aqueles que estávamos à espera, e que estão em melhores condições do que pensávamos graças ao acesso à água e aos alimentos que lhes proporcionamos».
A «equipa» a que Kirby se refere são 130 «conselheiros militares» enviados pelos EUA para o Norte do Iraque, no início da semana passada, com o propósito de avaliarem uma possível «intervenção humanitária». Alguns dos militares deslocaram-se, quarta-feira, 13, à área onde a ONU dizia que se haviam refugiado 40 mil yazidis curdos e cristãos iraquianos. Alegadamente, terá sido a operação de apuramento dos EUA que permitiu perceber que somente cerca de mil civis permaneciam nas montanhas.
Os membros das minorias religiosas yazidi (tida como o primeiro credo monoteísta, fundado pelo persa Zaratustra), e filo-católica iraquiana, foram obrigados a fugir quando os jihadistas tomaram de assalto as cidades de Qaradosh, situada entre Mossul e Erbil, e Sinjar, situada a Oeste de Mossul, a caminho da fronteira com a Síria.
A ofensiva das forças do «califado islâmico» provocou o êxodo de um total de 200 mil pessoas, de acordo com cálculos das fontes já citadas, e um drama humanitário que se anunciou de grandes proporções, uma vez que os refugiados iraquianos somam-se aos sírios exilados no Norte do Iraque depois do EI ter consolidado o seu domínio em parte do território da Síria.
«Bombardeamentos humanitários»
A campanha do EI não parece ter tido como principal propósito, pesem as consequências, a perseguição religiosa de yazidis e cristãos. O objectivo seria marchar sobre Erbil, capital do Curdistão iraquiano.
Na sexta-feira, dia 8, o chefe do gabinete da presidência do Curdistão lamentava a morte de peshmergas (soldados curdos) durante os combates com o EI, que avançava a bom ritmo. No mesmo dia, o responsável pelo exército iraquiano anunciava que curdos, autoridades de Bagdad e conselheiros norte-americanos preparavam ataques aéreos. Horas depois, os EUA admitiram ter efectuado bombardeamentos contra posições e colunas militares do EI, o que viriam a repetir até domingo, 10, invocando a necessidade de proteger o poder instalado no Curdistão, bem como os norte-americanos que ali se encontram a «ajudar» as autoridades locais.
A campanha aérea foi ainda justificada pelo Pentágono e pelo próprio presidente Barack Obama com o falhanço dos serviços secretos norte-americanos em relatarem um novo avanço rápido do Estado Islâmico [as mesmas culpas foram atribuídas aquando da campanha relâmpago do EI, no início de Junho], e com a necessidade de proteger as comunidades religiosas minoritárias.
O facto é que os EUA voltaram a bombardear o Iraque, o que já não acontecia desde o final de 2011. Outro facto é que, a par da ajuda (alimentos, água, etc) despejada sobre o Monte Sinjar, EUA, França e Grã-Bretanha garantiram o envio de armas e equipamento militar para os curdos. A França anunciou mesmo que o faria sem que os seus parceiros da UE discutissem o assunto, antecipando-se à reunião que estava agendada para sexta-feira, 15, a seu pedido, e na qual se previa que os estados-membro da UE sufragassem a subalternidade aos EUA.
Cheque-mate a Maliki... e à Síria
A par dos «bombardeamentos humanitários», concretizando uma iniciativa há muito almejada pelo imperialismo nas proximidades da Síria – abrindo um precedente para desenvolvimentos bélicos ulteriores na região, o armamento dos curdos pode traduzir-se igualmente num cheque-mate ao primeiro-ministro iraquiano, Nuri al-Maliki.
Al-Maliki perdeu as boas graças do imperialismo pelas posições em defesa da integridade e soberania da Síria. É sintomático que questionado sobre a duração dos «bombardeamentos humanitários» norte-americanos, Barack Obama tenha frisado, dia 9, que «o calendário mais importante (…) é o que vai permitir que o governo iraquiano fique concluído». Obama referia-se à substituição de al-Maliki pelo também xiita al-Abadi, decidida pelo presidente do Iraque, o curdo Fouad Massum, indigitado dias antes da actual ofensiva do EI contra o Curdistão.
Al-Maliki contesta a decisão porque, sustenta, a sua coligação venceu as «eleições» de 30 de Abril. No domingo, 10, veio mesmo à televisão garantir que não abdica de cumprir um terceiro mandato, isto enquanto as forças de segurança ocupavam Bagdad como se aguardassem um golpe de Estado.
Na quarta-feira, 13, al-Maliki viu o Tribunal Federal do país confirmar que a designação de al-Abadi viola a Constituição. O parlamento iraquiano adiou a votação do nome proposto pelo presidente Fouad Massum.
A ingerência imperialista num país imerso numa guerra e numa crise político-social equivale a deitar gasolina sobre fogo.