Sacrificar os povos à pilhagem imperialista
Muito se disse já e dirá ainda, este ano, sobre a Primeira Guerra Mundial. Como sempre sucede no aniversário redondo de alguma efeméride relevante (e ainda mais tratando-se de um centenário), proliferam as comemorações e evocações: são organizados congressos e conferências, editados ou reeditados livros, publicadas reportagens e entrevistas, transmitidos documentários, filmes e séries em horário mais ou menos «nobre».
Em todos eles se dirá ou mostrará, certamente, que a «Grande Guerra», como então foi chamada, ceifou 20 milhões de vidas, militares e civis, e que nela foram utilizados pela primeira vez em grande escala armamentos modernos como a metralhadora, o avião, o carro blindado, o submarino, a artilharia pesada, os gases tóxicos. Muito se falará e escreverá também acerca da barbaridade das batalhas nas trincheiras e de como foram sacrificadas milhares e milhares de vidas para conquistar alguns metros de terreno ao inimigo, e muitas vezes nem isso (na frente ocidental, aliás, a frente pouco mudou até 1917). Dir-se-á ainda, o que é igualmente verdade, que aquando do desfecho da Guerra tinham desaparecido quatro grandes impérios – o Alemão, o Austro-Húngaro, o Russo e o Otomano –, que deram lugar ao surgimento de novos países, redesenhando-se por completo o mapa da Europa, e não só.
Se estes são alguns dos factos que marcaram a Primeira Guerra Mundial, a avaliação das causas profundas que originaram este conflito generalizado é tarefa bem mais difícil de empreender, sobretudo num espaço tão limitado. De facto, não só o conjunto de variáveis, fontes e factores a ponderar é virtualmente interminável, como são diversos os enquadramentos ideológicos de onde partir. Uma coisa é, porém, certa: a História, com agá maiúsculo, é muito mais do que uma sucessão de acontecimentos, por mais incontestáveis e indiscutíveis que estes possam ser, e é necessário ver para lá deles.
Tratados e alianças
O assassinato, em Sarajevo, do arquiduque austro-húngaro Francisco Fernando, em finais de Junho de 1914, e a subsequente declaração de guerra do império dos Habsburgos ao reino da Sérvia, um mês depois, é apresentado como o rastilho (ou o pretexto) para o conflito – que o complexo sistema de alianças então existente entre os diversos países e potências, um autêntico «barril de pólvora», se encarregou de generalizar.
Certo é que em 1914 as principais potências europeias estavam associadas (entre si e com outros países) numa densa teia de acordos e tratados. A Sérvia era aliada da Rússia czarista – que se encontrava, por sua vez, unida por tratados à França e ao império Britânico, estando estes dois países igualmente associados. Já o império Austro-Húngaro há muito que tinha estabelecido acordos militares com o império Alemão e a Itália. Tendo sido estas as alianças que estiveram na origem da Primeira Guerra Mundial, o aproximar, deflagrar e desenrolar do conflito acabariam por levar a uma redefinição dos campos em contenda e ao seu alargamento.
O império Otomano (ou o que dele restava) juntou-se aos dois impérios centrais, enquanto a Itália acabaria por entrar na guerra, mas ao lado de franceses, britânicos e russos; os Estados Unidos da América, que sairiam do conflito como a mais poderosa e dinâmica economia do Mundo, só chegaram aos campos de batalha em 1917, contra alemães e austríacos; e a Rússia, desmembrado o império e tomado o poder pelos bolcheviques, retirou-se dos combates em Novembro desse mesmo ano (ver página 18). É este jogo intrincado de alianças e tratados, as suas razões e significado, que importa desvendar.
Para lá da espuma
Deve-se a Lénine as mais profundas e consequentes análises sobre a Grande Guerra. O facto de, na sua maioria, as ter produzido no calor dos acontecimentos, não o impediu de apreender as grandes tendências e movimentos da História, vendo muito para lá da conjuntura e da propaganda.
Ao contrário de alguns que, ontem como hoje, se referem à Primeira Guerra Mundial como um conflito «que ninguém queria», tornado real graças à apatia generalizada das grandes potências europeias, Lénine viu-a como expressão do sistema capitalista na sua fase imperialista. Na sua obra «O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo»1, de 1917, Lénine analisa a expansão do capitalismo e a criação e «consórcios, trusts e associações de capitalistas milionários» que concentravam ramos inteiros da indústria e dividiam entre si – à escala planetária – recursos, colónias e mercados.
Esta tendência para a expansão, notava Lénine, geraria inevitavelmente conflitos entre as potências imperialistas: a Alemanha, muito embora fosse à época a economia europeia que mais crescia, ficara para trás em matéria de colonização, situação que pretendia a todo o custo alterar; algo que a França e a Grã-Bretanha, potências coloniais dominantes, estavam decididas a impedir.
Notando que desde finais do século XIX só seriam possíveis «redivisões [de territórios], isto é, a transferência de um “dono” para outro, e não de um território sem dono para um “dono”»2, Lénine salientou que a Grande Guerra não fazia mais do que continuar, por outros meios, a política de «pilhagem das colónias, de opressão de nações estrangeiras, de repressão do movimento operário» prosseguida durante décadas pelos governos e as classes dominantes da Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Áustria e Rússia3
Na origem da Primeira Guerra Mundial estiveram, pois, rivalidades inter-imperialistas e foi em seu nome que se chacinaram milhões de seres humanos.
Rivalidades, partilhas e novos conflitos
Os meses e anos que a antecederam ficaram marcados pelo estabelecimento das alianças e pela corrida aos cada vez mais sofisticados armamentos. A convicção de que então se caminhava para um conflito militar de grandes proporções generalizou-se: em 1912 (antes portanto das traições de muitos dos seus principais dirigentes), a II Internacional alertou para o risco de guerra e apelou à luta para travar a catástrofe que se adivinhava.
O carácter predador da Guerra ficaria ainda mais claro depois se calarem os canhões: a 11 de Novembro de 1918, dias depois do colapso do império Austro-Húngaro, a Alemanha assina a capitulação. As condições da rendição, impostas no Tratado de Versalhes (assinado em Junho do ano seguinte), não foram mais do que a entrega às potências vencedoras dos mercados, fontes de matérias-primas, colónias e esferas de influência antes nas mãos do império Alemão e dos seus aliados, e o esmagamento e humilhação dos derrotados: «Isto não é a paz, mas sim condições ditadas por bandidos», diria Lénine. Já a Itália e o Japão, muito embora tenham estado ao lado dos vencedores, não viram satisfeitas muitas das suas reclamações coloniais.
As sementes da Segunda Guerra Mundial eram lançadas à terra.
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1 V. I. Lénine «O imperialismo, Fase Superior do Capitalismo», Obras Escolhidas em VI tomos, Tomo II, Edições Avante, 1984
2 Idem, ibidem
3 V. I. Lénine «O Socialismo e a Guerra», Obras Escolhidas em VI tomos, Tomo II, Edições Avante, 1984