Jerónimo de Sousa, Secretário-geral do PCP

Páginas da construção de um tempo novo

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(…) Por este V Tomo das Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal passa uma parte muito significativa e essencial da história da Revolução de Abril, escrita por quem, em nome do PCP, se apresentou perante o nosso povo tal como era e anunciando com total transparência e verdade, ao contrário de outros, os objectivos e o projecto de um Partido que haveria de desempenhar, no plano da intervenção e acção política, um papel ímpar na Revolução. Na diversidade dos textos que seguem a fita cronológica dos acontecimentos, num processo que se desdobra à velocidade da luz se reconhece a vivência de um tempo novo.

O tempo novo de uma Revolução, que o povo português tomou nas suas próprias mãos para responder às suas aspirações mais profundas de liberdade, emancipação social, desenvolvimento independente e soberano. Um tempo novo de construção e transformação da vida de todos e de nós próprios que se descobre em cada dia que passa e em cada página folheada.

Páginas que desfiam um tempo que foi demasiado curto para levar até ao fim, e a bom porto, a ciclópica tarefa de democratização da sociedade portuguesa com profundas transformações económicas e sociais, como propúnhamos e o nosso povo abraçou, mas um tempo exaltante de luta e descoberta, de iniciativa criadora das massas populares, que significam anos acumulados de realização, conquista, vivência e experiência colectivas que são inapagáveis e que serão sempre uma referência na construção de uma alternativa para servir os verdadeiros interesses dos trabalhadores, do nosso povo e do País.

É significativo e uma feliz coincidência que as primeiras palavras da entrevista que abre o V Tomo sejam para se afirmar que «o movimento militar vitorioso do 25 Abril não caiu do céu» e, com tais palavras, iniciar a resposta à perplexidade manifestada pelo jornalista do L’ Humanité que procurava, logo no dia seguinte, explicação para o que dizia ser um êxito fulminante do levantamento militar. Não caiu do céu o movimento militar vitorioso dos capitães a quem muito o País deve, como não iriam cair do céu os avanços, as conquistas, as grandes transformações que se lhe haveriam de seguir, nesse impetuoso processo revolucionário de Abril onde se combinou essa aliança original e frutuosa do Movimento das Forças Armadas e um poderoso movimento popular de massas. Movimento de massas que vinha em ascensão e que se tinha tornado um dos factores determinantes na criação da situação revolucionária e que contribuiu em grande medida também para fazer implodir num ápice a mais velha ditadura da Europa.

Era difícil apreender para quem olhava do lado de lá dos Pirenéus, ainda por cima tantas vezes enublado por uma deturpada e ilusória visão do País, do nosso povo e da sua luta, que esse fulgurante êxito era o culminar de um processo de uma longa luta de resistência dos trabalhadores e do povo ao fascismo, que tinha conduzido o regime a uma profunda crise interna e ao seu isolamento nacional e internacional, também com a luta dos movimentos de libertação nacional contra o colonialismo português. (…)

 Não deixar ninguém indiferente

 De facto, desde o primeiro momento que a Revolução portuguesa desperta a atenção e até a admiração de todo o mundo. Este V Tomo é bem a expressão desse interesse e dessa atenção pelo abundante número de esclarecedoras entrevistas concedidas por Álvaro Cunhal, em nome do PCP, aos mais variados órgãos de imprensa escrita de praticamente todos os continentes. Elas revelam o impacto da Revolução portuguesa na vida internacional.

Uma Revolução que não deixou ninguém indiferente. Não deixou indiferente as forças do progresso de todo mundo que viam na Revolução Abril a confirmação de que era possível abrir janelas de esperança na luta dos trabalhadores e dos povos pela sua emancipação, e vencer. Não deixou indiferente o imperialismo e todos os inimigos da luta de libertação dos povos que anteviam no exemplo da Revolução Portuguesa um sinal de perigo às suas posições de domínio no sistema de exploração e, por isso, desde cedo tanto se empenharam, fazendo costas com a contra-revolução interna para travar e inverter o processo de democratização e transformação económica e social da sociedade portuguesa.

Afirmava Álvaro Cunhal que a Revolução Portuguesa é a «história de grandiosas e constantes lutas da classe operária e das massas populares, aliadas aos militares revolucionários, para libertar Portugal da opressão, da miséria, da exploração, da injustiça e das desigualdades sociais, para democratizar a vida nacional na perspectiva do socialismo». São essas lutas que perpassam por todas estas páginas, a primeira das quais foi a luta para garantir as liberdades que tiveram que ser conquistadas. Lutas que tiveram que enfrentar e superar a mais tenaz resistência das forças que a todo o custo pretendiam manter Portugal amarrado a um passado de exploração e garantir intacto o poder económico dos grandes monopólios e latifundiários, suportes da ditadura fascista.

O grande capital e as forças fascistas e reaccionárias utilizaram todos os seus poderosos recursos para, ditatorialmente, tomar conta do poder e impedir a democratização da vida nacional. Muitas vezes, é preciso não esquecer, com a conivência, senão com o apoio e envolvimento, de outras forças que se reclamavam da democracia e até do socialismo, com particular evidência à medida que a Revolução punha em marcha profundas transformações económicas e sociais e, de forma declarada, a partir do momento em que o capitalismo monopolista de Estado é liquidado, com as nacionalizações da banca e das empresas dos sectores estratégicos da economia nacional.

 Avançar contra a sabotagem

 A Revolução desde muito cedo enfrentou a sabotagem do grande capital e uma tentativa de estrangulamento económico que se tornou sistemática e que se tornou uma preocupação maior na condução dos destinos da jovem democracia portuguesa. Uma preocupação cada vez mais presente na intervenção do Partido. Denunciar as práticas de sabotagem e de paralisação dos centros vitais e impedir a desorganização País passou a ser, a par da luta pela liberdade, uma questão central para a defesa da Revolução.

Uma questão tantas vezes evidenciada nos discursos de Álvaro Cunhal, e que revelava e traduzia o avolumar de uma crescente contradição entre o poder político democrático e o poder económico que tinha optado por estrangular o desenvolvimento do País, fazendo disso uma arma de desestabilização da Revolução.

Desestabilização que o grande capital, as forças da contra-revolução e os seus homens-de-mão levaram muito longe, ao promoverem logo no primeiro ano da vida democrática três golpes contra-revolucionários, cuja iniciativa as forças fascistas e da direita reaccionária insidiosamente remetiam para o PCP, com a colaboração do PS, numa evidente manobra de alijamento de responsabilidades e de quem faz o mal e a caramunha. (…)

Importantes transformações progressistas foram primeiro concretizadas na prática e só posteriormente legitimadas pelo poder. Uma Revolução que pôs em marcha um original processo de nacionalizações e de ocupação de terras e de Reforma Agrária, realizadas para responder a necessidades imediatas de defesa da economia e de defesa das próprias liberdades, mas também o original processo de controlo operário e de gestão, em centenas de empresas, pelos trabalhadores.

Grandes conquistas e profundas transformações que permitiram criar uma nova estrutura económica liberta do poder dos monopólios e dos latifundiários.

Neste quadro, as nacionalizações constituíram um acto patriótico, que contou com a insubstituível intervenção dos trabalhadores, de resposta às manobras dos grupos económicos para liquidar o regime democrático. Um acto de construção de um instrumento capaz de suportar as necessidades de um desenvolvimento ao serviço de uma justa distribuição de riqueza e de elevação das condições de vida do povo, e uma sólida alavanca de desenvolvimento económico do País.

O mesmo acontecia com a Reforma Agrária que havia de ser conduzida pelo proletariado agrícola alentejano e ribatejano. Pela primeira vez na História do nosso País, os trabalhadores tomaram a decisão de tomar as terras do latifúndio e com elas nas suas próprias mãos o seu destino, desbravando terras incultas e concretizando um inovador programa de transformações económicas e de justiça social que iria resolver os problemas da produção e do emprego nos campos do Sul do País, através das suas mais de 500 UCP/Cooperativas. (…) Todas estas realizações e conquistas que se traduziram em significativas melhorias das suas condições de vida não foram o resultado de um qualquer voluntarismo revolucionário, antes corresponderam a necessidades objectivas, aos interesses e vontade do nosso povo.

 Batalhas decisivas

 Mas o que revela igualmente esta obra que agora se dá à estampa são as razões que nos afirmam como Partido de Abril. Não apenas pelo contributo dado na definição e concepção do projecto de Revolução Democrática e Nacional que a Revolução de Abril traduz nas profundas alterações que produziu e na sua assumida natureza amplamente democrática, antimonopolista e anti-imperialista, mas pelo que a cada página volvida deste V Tomo se pode encontrar de intervenção e acção empenhada na defesa da Revolução e de defesa e aprofundamento das suas conquistas, de dedicação à causa da liberdade e da democracia e da sua institucionalização, de proposta de solução em todos os domínios da vida colectiva, no plano político, económico e social, na dinamização e organização da participação dos trabalhadores e do nosso povo na defesa dos seus legítimos interesses e do País.

No folhear destas páginas encontramos um Partido que se desdobrava em todas as frentes de batalha.

Na batalha pela unidade da classe operária, dos trabalhadores nas empresas e locais de trabalho, mas também grande batalha pela unidade sindical e contra o divisionismo, na batalha pela concretização de amplas alianças sociais das classes e camadas não monopolistas, das forças democráticas à volta da instauração de um regime democrático construído pelo próprio povo e com profundas reformas sociais. (...)

Na batalha da verdade – uma das grandes batalhas da revolução – contra as falsas ideias, as reservas, os preconceitos, os ódios semeados pela reacção contra as forças progressistas que atingiu uma parte significativa do território nacional e impediam o exercício dos direitos e liberdades democráticas. Na batalha em defesa dos interesses imediatos dos trabalhadores e das populações, pela elevação da sua qualidade de vida, no governo e fora dele, e de apoio às grandes conquistas da Revolução.

Na importantíssima batalha de consolidação e reforço da aliança do Povo/MFA e no encontrar solução para a magna questão do poder político. Um poder que desde a primeira hora, tanto nos órgãos superiores civis como militares, se apresentou heterogéneo e contraditório, dando origem à criação e multiplicação de centros de decisão que tornaram determinante a correlação de forças a nível militar e popular, na superação dos inevitáveis conflitos. Problema que resultou numa fragilidade da revolução portuguesa, explorado pelas forças mais reaccionárias e por todos aqueles que haveriam de liderar posteriormente, através dos seus governos (PS e PSD), o processo de recuperação capitalista e monopolista a partir de 1976 (…).

 

Excertos e subtítulos da responsabilidade da redacção



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Reflexão e prática ímpares

O lançamento do V tomo das «Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal» é um importante acontecimento editorial, com significado acrescido neste ano em que se assinala o 40.º aniversário da Revolução de Abril. Abarcando um período relativamente curto do ponto de vista cronológico, mas intenso e recheado de acontecimentos de profundo significado histórico (entre o derrube do fascismo e o final de 1975), o volume constitui, nas palavras proferidas pelo editor Francisco Melo no dia 17, na sessão de lançamento, um «verdadeiro guia do itinerário seguido pelo processo revolucionário». Da sua leitura, acrescentou Jerónimo de Sousa, sobressai a «vivência de um tempo novo».

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